Por Pedro Kutney
A meteórica ascensão da indústria automotiva chinesa ainda deverá ser melhor descrita em muitos estudos socioeconômicos, mas já é possível afirmar que nunca antes na história um só país dominou uma cadeia produtiva global inteira em tão pouco tempo – e segue arrochando o torniquete sobre os fabricantes ocidentais de veículos e componentes, que parecem atordoados como rãs à noite diante das lanternas de seus caçadores.
Apesar de toda a resistência de alguns países aos produtos chineses com imposição de tarifas pesadas, especialmente nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa, a situação é inescapável: em partes ou no todo todos os carros já são ou serão chineses.
Não se trata apenas de veículos importados inteiros em quantidades crescentes, que tomam cada vez mais espaço de fabricantes locais tradicionais em seus próprios mercados, mas de dependência bem mais profunda, pois atualmente qualquer carro, produzido em qualquer lugar, depende de componentes e insumos da China – e muitos já estão sendo projetados por engenheiros chineses.
Para as empresas a lógica é simples: por que gastar bilhões em anos de desenvolvimento se o concorrente chinês já tem tudo pronto por preços bem camaradas? Seguindo esta estratégia em tempos de caixas apertados os fabricantes ocidentais estão comprando de tudo na China, de projetos de plataformas eletrificadas, passando por módulos eletrônicos de controle e, claro, as baterias, pois 80% delas no mundo são produzidas por fornecedores chineses.
Isto sem falar de insumos essenciais à produção de qualquer veículo atualmente, seja eletrificado ou a combustão. A China tem domínio quase que total dos minerais de terras-raras, estão lá as maiores reservas do mundo e o país controla globalmente 90% do processamento e refino desses minérios e 93% da produção de ímãs – que dentre outras funcionalidades em um automóvel fazem funcionar os motores elétricos – e outros componentes feitos com esses materiais, presentes hoje na grande maioria de qualquer carro.
O mais impressionante é que quase todo este domínio da cadeia de veículos e seus componentes foi construído em menos de uma década, mais fortemente nos últimos cinco anos. Foi precisamente em maio de 2020, quando o mundo já estava afundado na pandemia de covid, que o presidente Xi Jinping, em uma reunião do Politiburo do Partido Comunista Chinês, em poucas palavras resumiu ambição geopolítica do país e o plano para alcançá-la: “Tornar o mundo mais dependente da China. Tornar a China menos dependente do mundo”. E assim é.
Dominância crescente
Depois de aprender e se viciar em comprar de tudo da China os fabricantes tradicionais de veículos estão cada vez mais dependentes do que fazem com parceiros chineses, na melhor estratégia do se-não-pode-com-eles-junte-se-a-eles. Alguns exemplos:
• A Audi desenvolveu em apenas dezoito meses o elétrico E5 Sportback, produzido exclusivamente na China em sociedade com a SAIC, que fornece baterias, motor e sistemas de infoentretenimento e de assistência ao motorista, os ADAS.
• A Volkswagen, do mesmo grupo da Audi, desenvolve veículos elétricos para a China usando arquitetura e softwares da Xpeng. Em outro projeto virá da sócia SAIC o powertrain híbrido que equipará a nova picape Amarok, a ser produzida na Argentina a partir de 2027.
• A Toyota trabalha com a GAC para desenvolver novos veículos elétricos na China.
• A Renault lançou o novo Dacia Spring elétrico – no Brasil o carro é importado da China desde 2021 e vendido como Kwid E-Tech – sobre plataforma desenvolvida pela Dongfeng. O novo Twingo está sendo projetado em Xangai por uma firma chinesa de engenharia. E para o mercado brasileiro a Renault começou a importar recentemente modelos elétricos da sócia Geely, que eventualmente poderão ser montados no País com toneladas de componentes importados de fornecedores chineses.
• A General Motors está se valendo de sua sócia chinesa SAIC-Wuling para vender carros elétricos mais baratos em mercados emergentes com sua marca Chevrolet. Por meio deste arranjo a GM já lidera o mercado mexicano e começa a adotar plano parecido no Brasil, onde já iniciou a importação dos dois modelos elétricos Spark e Captiva, que na sequência deverão ser montados pela Comexport na antiga fábrica da Troller em Horizonte, no Ceará, em kits SKD – conjunto importados da China já semimontados.
• A Stellantis adota plano parecido com a importação de modelos da sócia Leapmotors para mercados fora da China, inclusive o Brasil.
• A Ford negocia parcerias na China após o CEO Jim Farley tecer elogios ao SU7 da Xiaomi, fabricante de computadores e smartphones que recentemente decidiu estender seus domínios à produção de veículos com pegada de alta tecnologia.
O risco é que os fabricantes tradicionais tornem-se revendedores de tecnologias desenvolvidas por terceiros, o que tem efeito direto sobre a identidade das marcas automotivas. Mas ao que tudo indica não há outro caminho possível no momento.
Domínio da cadeia produtiva
Se alguns países como Estados Unidos e Canadá ainda bloqueiam a entrada de carros chineses em seus mercados o mesmo não se pode dizer de componentes e insumos essenciais.
E a China está usando seu domínio de minerais e componentes de terras-raras para colocar de joelhos os mercados globais. Recentemente o governo chinês impôs restrições às exportações destes insumos e maquinários de produção, o que poderá paralisar boa parte das linhas de produção de veículos pelo mundo. A medida, já utilizada antes neste ano e agora retomada, vem sendo encarada como uma reposta de Pequim às pesadas tarifas de importação impostas a produtos chineses pelo imperial governo de Donald Trump.
O desenvolvimento de fornecedores alternativos de materiais de terras-raras – o Brasil tem a segunda maior reserva – demora muito tempo e até lá os fabricantes do mundo inteiro estão nas mãos da China: sem importar insumos chineses a produção de veículos pode simplesmente parar.
A dependência global de importar componentes automotivos chineses é cada vez maior e o Brasil é um caso exemplar: a China é há alguns anos o maior fornecedor de autopeças importadas para o País, muito à frente de, nesta ordem, Estados Unidos, Japão e Alemanha, exportando em dólares para cá cerca de o dobro do que cada um destes três países vende a montadoras e mercado de reposição em solo brasileiro.
De janeiro a setembro deste ano as importações de autopeças da China pelo Brasil cresceram 19,6% em comparação com o mesmo período de 2024, totalizando US$ 3,3 bilhões, equivalente a 18,4% do valor gasto pelo País com componentes importados nestes nove meses. Segundo o Sindipeças o movimento é explicado pelo real mais valorizado e a reorientação de exportações chinesas após o aumento de tarifas a seus produtos nos Estados Unidos – que, aliás, foi no mesmo período o segundo maior exportador de peças ao Brasil: US$ 1,9 bilhão.
Os valores de importações de autopeças importadas da China tende a aumentar de 2026 em diante tendo em vista o início da produção local da BYD e GWM – além de outras com igual intenção de instalar linhas de montagem no País –, que iniciaram a operação montando veículos com quase a totalidade dos componentes importados, com promessas de nacionalização lenta, gradual e restrita.
Inundação de carros chineses
Nas últimas duas décadas a China escalou toda a sua cadeia automotiva em alta velocidade e há mais de dez anos tornou-se a maior produtora e maior mercado de veículos do mundo, chegando à capacidade atual de produzir 50 milhões de unidades por ano, o que corresponde a mais da metade, 55%, do mercado mundial atual.
Nunca antes um único país conseguiu tamanha fatia produtiva. Em termos comparativos os Estados Unidos, segundo maior mercado de veículos do mundo, produz não mais do que 10 milhões de unidades/ano.
O problema é que nem o mercado chinês consegue consumir tanto e ocupa cerca de somente a metade da capacidade das fábricas. A alternativa para reduzir a ociosidade é uma corrida à exportação que está inundando o mundo com carros chineses.
O potencial produtivo da China foi inflado especialmente por montadoras nacionais que, ao longo da última década, multiplicaram-se em mais de cem marcas e cresceram em volume e qualidade, tomando terreno antes ocupado por fabricantes estrangeiros, que começaram a se instalar no país na década de 1990 em sociedade com empresas chinesas. Após anos de inflada prosperidade as marcas internacionais foram superadas pelas chinesas, que hoje dominam mais de 60% das vendas domésticas.
O resultado desta disputa foi a drástica redução de mercado para os fabricantes estrangeiros, que hoje vendem 8 milhões de veículos a menos do que há cinco anos.
Ao mesmo tempo o excesso de capacidade produtiva e a acirrada concorrência no mercado chinês provocou uma guerra de preços na qual somente empresas chinesas têm condições de participar, pois dominam toda a cadeia produção, controlam melhor seus custos e ainda recebem subsídios do governo.
Para reduzir a crescente ociosidade das fábricas o caminho apontado foi a internacionalização. O governo central indica que promoverá uma consolidação de empresas do setor e só sobreviverão aquelas com presença internacional. Resumindo, é exportar ou morrer.
Com produtos sensivelmente melhores do que há poucos anos – principalmente elétricos e híbridos –, custos imbatíveis e pressão do governo combinada com incentivos, as fabricantes chinesas correram para sobreviver e, em apenas cinco anos, a China tornou-se o maior exportador de carros do mundo, saltando de 1 milhão de unidades embarcadas em 2020 para cerca de 7 milhões este ano, que chegam a mais de cem países.
Foi mais um baque para os fabricantes ocidentais que, além de perderem muito terreno na China – que para muitos deles foi e ainda é o seu maior mercado mundial –, também começaram a ceder espaço para os chineses em seu próprio país e nos mercados externos onde também produzem ou exportam.
Com poder de competição global cada vez mais reduzido e mercado europeu retraído joias da coroa automotiva alemã, como Volkswagen, Mercedes-Benz e Bosch, já anunciaram dezenas de milhares de demissões.
Se deixar a porta aberta os chineses entram
Os chineses saíram batendo em todas as portas pelo mundo e entraram onde deixaram. Não são só mercados emergentes que as marcas automotivas chinesas estão dominando mas qualquer um que permita, mesmo que com a aplicação de tarifas. O Reino Unido, por exemplo, já é o maior mercado externo da BYD e a ambição voraz declarada das marcas chineses é liderar o mercado britânico até 2030.
E nos países onde entram carros completos ou parcialmente montados também entram as autopeças, que se somam às já fornecidas a fabricantes locais e para reposição.
O Brasil também tornou-se um interessante ponto de desembarque e conquista. Este ano, de janeiro a setembro, foram emplacados 123,5 mil veículos importados da China, em crescimento de 51% sobre igual período de 2024, com fatia equivalente a quase 7% dos emplacamentos. Isto sem contar algo como 100 mil carros já importados por fabricantes chineses que ainda serão vendidos.
O resultado dos chineses é bastante expressivo, dado que o mercado brasileiro enfrenta retração e as vendas de automóveis e comerciais leves produzidos no País avançaram menos de 2% em nove meses.
Há três anos a China tornou-se o segundo maior fornecedor de veículos importados ao Brasil e este ano, em agosto e setembro, o país pela primeira passou a Argentina.
Dominação concluída
A voracidade da indústria automotiva chinesa deixa os fabricantes ocidentais paralisados – tanto economicamente pelos volumes de produção sem precedentes a custos imbatíveis como, também, literalmente pela restrição proposital do governo chinês em fornecer minérios de terras-raras e de maquinário para processá-los.
“É a coisa mais humilhante que já vi”, resumiu recentemente Jim Farley, o CEO da Ford.
A situação certamente perpassa a indústria automotiva, pois envolve a segurança econômica de países, sobrevivência de indústrias nacionais e independência estratégica de insumos e tecnologias. Mas é certo que os abismos competitivos abertos no mundo pela China são difíceis de fechar, o que já enseja uma escalada protecionista que descamba para animosidades políticas por parte de países que não conseguem mais competir. Está difícil reequilibrar forças.
Na indústria automotiva – e em muitos outros setores – a China não dominará o mundo porque já dominou, até mesmo em países onde seus carros não entraram ainda.
Fonte: AutoData






















