Mais que bandeira setorial, direito à reparação é uma questão de respeito ao consumidor


Um dos principais exemplos destes desafios iminentes reside no direito universal ao reparo dos veículos (Por Lucas Torres jornalismo@novomeio.com.br)
Mais que bandeira setorial, direito à reparação é uma questão de respeito ao consumidor

Tecnologia, automação e conectividade são termos cada vez mais indispensáveis em qualquer reflexão sobre o atual momento do mercado automotivo mundial. À primeira vista, todos eles indicam avanço rumo à construção de um ecossistema de mobilidade urbana mais sustentável e seguro nas ruas daquelas que virão a ser as cidades inteligentes.

Quando se observa de perto determinadas práticas que acompanham todas estas mudanças na configuração dos carros, porém, é inevitável se deparar com impactos preocupantes que – de maneira paradoxal – apontam para possíveis retrocessos a que podemos chegar caso a inovação não venha acompanhada de uma regulamentação criteriosa.

Um dos principais exemplos destes desafios iminentes reside no direito universal ao reparo dos veículos. Isso porque, se há algumas décadas bastava, muitas vezes, ter um ‘bom ouvido’ para que reparadores experientes pudessem identificar alguns defeitos nos automóveis, hoje cada vez mais os diagnósticos exigem ferramentas digitais e dados que vão se tornando mais difíceis de serem acessados pela manutenção independente, tal como indica o presidente do Sindirepa Nacional, Antonio Fiola.

“Com a evolução da tecnologia e o crescimento de semicondutores nos veículos automotores somados agora à introdução de sistemas de segurança “firewall”, as dificuldades de acesso por parte das oficinas independentes aos diagnósticos com os equipamentos hoje disponíveis só aumentam”, aponta o dirigente. Corroborando a visão do colega, o diretor da Alvarenga Projetos Automotivos, Luiz Sergio Alvarenga, afirma que tais bloqueios de acesso às informações necessárias para o reparo já são uma realidade e se revelam na presença cada vez maior do Security Gateaway (SGW) nos automóveis conectados, sso acontece porque o SGW, que é uma realidade em carros que já estão nas ruas, consiste em uma espécie de ‘porteiro’ que cuida da segurança dos carros conectados contra a invasão de hackers, mas que também tem a habilidade de impedir o acesso dos reparadores independentes ao ‘cérebro’ eletrônico dos veículos, leitura indispensável para o diagnóstico de defeitos e a realização dos reparos. “Isso já é uma realidade, esses carros estão nas ruas. As oficinas não conseguem mais acessar as informações e ficam reféns das concessionárias”, relata Alvarenga.

Especialista em Direito do Consumidor mostra preocupação com setor automotivo Doutora em Direito do Consumidor pela UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Laís Bergstein afirma que o tema do acesso à reparação é uma preocupação multissetorial e, além do setor automotivo, está presente nos debates das indústrias de celulares, diversos equipamentos eletroeletrônicos e outros produtos. No entanto, o setor automotivo se destaca entre aqueles que demandam maior atenção em face da direção com que a evolução tecnológica tem avançado. “No setor automotivo, eu pessoalmente acredito que as restrições impostas aos consumidores serão ainda maiores em futuro próximo, o que acentua a importância do movimento que busca o reconhecimento de um direito ao reparo. O incremento da tecnologia dos automóveis híbridos dificulta sobremaneira o exercício do direito ao conserto”, apontou Laís, antes de ilustrar com um case factual: “A John Deere, maior fabricante de máquinas agrícolas do mundo, há alguns anos causou comoção com a previsão nos seus contratos de que os clientes adquirem apenas uma “licença implícita para operar o veículo durante a vida útil do veículo”, ao invés da propriedade do maquinário, isso devido à sua preocupação com o uso do software instalado nos equipamentos”.

Direito ao livre reparo é pauta complexa a ser aprimorada no âmbito legal

Mais do que a queixa de um único elo do aftermarket automotivo, estas dificuldades impostas pelo represamento dos dados por parte dos fabricantes representa uma ameaça a toda a cadeia da reposição e – em um sentido mais amplo – aos direitos dos consumidores. No âmbito setorial, Fiola explica que o prejuízo transcende as oficinas mecânicas à medida que é delas a responsabilidade de gerar demandas para toda a cadeia. “Fica difícil mensurar (os impactos), mas carro parado na oficina por falta de informação acaba gerando ônus para todos os elos. A dificuldade em reparar tem efeito cascata para o mercado e provoca transtornos e prejuízos financeiros para todos os envolvidos”, colocou o presidente do Sindirepa Nacional. Já no que diz respeito ao direito do consumidor, a advogada e doutora no tema pela UFRGS, Laís Bergstein, aponta que o direito ao ‘livre reparo’ se trata de uma pauta complexa sob o ponto de vista legal no atual momento. Segundo ela, o Código de Defesa do Consumidor brasileiro possui disposições que podem respaldar a pretensão dos consumidores ao reparo, como a proteção aos seus interesses econômicos, o direito de acesso à informação adequada e clara etc. Mas, isso ainda deve ser analisado caso a caso, pois a legislação não tipifica expressamente o estabelecimento do direito ao reparo em toda e qualquer situação. Neste sentido, Bergstein coloca que, embora o trabalho do poder legislativo seja fundamental para tornar clara a garantia deste direito, é preciso encontrar alternativas para acelerar a defesa do acesso universal ao reparo – ao passo que, segundo a especialista, a via legislativa pode ser demorada. “É preciso que os juristas encontrem no direito posto, ou seja, nas leis já existentes, as soluções para os problemas contemporâneos. E isso acontece em todas as áreas”, indicou Laís, complementando com uma reflexão que, em certo grau, empodera os consumidores a conseguirem, eles mesmos, exercer esta pressão sobre os fabricantes a fim de defender o livre reparo. “A boa-fé nas relações negociais, especialmente nas contratações eletrônicas, e a proteção da confiança legítima em tempos digitais, impõem um novo paradigma de transparência e lealdade aos fornecedores, acentuando o seu dever de informar. Isso não significa que haverá um atendimento automático de grandes corporações aos pleitos dos consumidores, infelizmente. Mas o atendimento das legítimas demandas de direito ao reparo podem ser um diferencial valorizado no mercado de consumo”.

Mobilização de consumidores, empresários e especialistas do direito dá origem ao Movimento Right to Repair

A opinião da especialista em direito do consumidor Laís Bergstein de que a capacidade dos consumidores de exercer pressão nos fabricantes é uma alternativa fundamental para diminuir as travas do direito universal à manutenção ecoa entre os dirigentes do aftermarket automotivo. Em palestra ministrada no Sincopeças-SP no último dia 6 de julho (veja reportagem completa nesta edição), o diretor da Alvarenga Projetos Automotivo, Luiz Sergio Alvarenga, depositou na capacidade de mobilização dos consumidores aquela que talvez seja a maior esperança para se frear a ocultação de informações por parte das montadoras. “Este assunto tem que ser jogado no colo do consumidor. Se você for defender uma categoria, já perdeu. Alguns querem fazer um Projeto de Lei que vai obrigar a montadora a passar a informação para oficina – isso nunca vai acontecer, no máximo elas vão vender.

Sendo assim, o que tem que ser feito é batalhar para que o dono do carro tenha a informação – aí conseguimos extrapolar o nosso setor. Não é só a gente que está discutindo. Vai ter a discussão do celular e um monte de outros setores. Com isso, você movimenta a massa e fica difícil um político ir contra”. Para aqueles que lutam pela retomada de maior liberdade da manutenção e reparação veicular independente, a boa notícia é que o ponto levantado por Alvarenga não consiste em um chamado para o início da mobilização, mas de fortalecimento a algo que já existe globalmente. Surgido nos Estados Unidos no ano de 2017, o Movimento Right to Repair vem ganhando capilaridade ao redor do mundo ao mobilizar associações e grupos de defesa de consumidores e de proteção do meio ambiente contra práticas de obsolescência programada (redução artificial da vida útil do produto ou serviço, antecipando o descarte) e técnicas industriais que impossibilitam ou encarecem excessivamente o reparo de diversos tipos de bens de consumo, como smartphones, computadores, eletroeletrônicos, veículos automotores etc. Segundo a advogada Laís Bergstein, a força do movimento na União Europeia é um exemplo de sua disseminação global – sobretudo pelo fato de que por lá, na comissão do continente, ele tem sido tratado como um componente importante daquilo que chamamos de economia circular. “O direito ao reparo pode se referir a diferentes questões e situações: reparo durante a garantia legal, o direito de conserto após a expiração da garantia legal e o direito dos consumidores de reparar os produtos eles mesmos”, coloca a especialista, antes de dar sua opinião pessoal sobre a relevância da mobilização: “O movimento em prol do resgate do direito ao conserto é relevante nesse sentido e se alia a outras demandas, como a de implementação de medidas efetivas de logística reversa. A proteção ao consumidor é crucial para a economia digital se desenvolver e precisamos também refletir acerca dos impactos ambientais provocados pelo consumo”.

O fato de o movimento transcender os limites do território brasileiro traz um alento para o preocupado aftermarket brasileiro. Ao comentar a questão, Antonio Fiola afirmou ver o Right to Repair como um instrumento importante em favor da luta da reparação independente, sobretudo por ter como pano de fundo uma era em que, segundo ele, muitas questões são levantadas em prol do consumidor.

Conheça algumas ações do Sindirepa para fortalecer a luta pelo direito à reparação

Na esteira do movimento Right to Repair, o dirigente da principal entidade representativa das empresas de reparação no Brasil, Antonio Fiola, listou algumas das principais articulações do Sindirepa nacional para dar força ao movimento e introduzi-lo na pauta automotiva nacional.

• Produção de um ofício para todas as montadoras associadas à Anfavea, bem como para a entidade, apresentando o movimento e a preocupação no Brasil com a imagem das marcas e a busca de equilíbrio.

• Estudo do ‘emaranhado de legislações’ no país para poder avançar com um Projeto de Lei que possa amparar os consumidores.

• Comunicação constante para esclarecimento junto ao mercado e à sociedade.

Fonte: Novo Varejo

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