Inteligência Artificial não é uma corrida de 100 metros
Tecnologia chega para ser implementada como parte de uma estratégia maior de transformação digital
Por Andriei Gutierrez*
Dois mil e vinte e três foi o ano em que o cidadão comum descobriu a Inteligência Artificial (IA). Todos foram pegos de surpresa pelo tamanho do avanço tecnológico e do seu potencial impacto. Mesmo entre especialistas da IA e do setor de Tecnologia, é possível dizer que não se esperava a dimensão do sucesso que foi a adoção e o interesse pela ferramenta em um curtíssimo espaço de tempo. Nesse contexto de sucesso, praticamente todo Chief Executive Officer (CEO) — assim como investidores e conselhos de administração — passou a demandar e a perguntar sobre planos para adotar IA, inovar com IA, largar na frente dos concorrentes com o uso da IA. De repente, essa tecnologia virou a nova corrida de 100 metros para se vencer a qualquer custo.
Não há dúvidas de que é muito relevante que as organizações e os profissionais comecem a ter contato com a IA, testá-la e começar a repensar e a redesenhar operações, produtos, processos e serviços. É preciso, no entanto, que isso seja feito como parte de uma estratégia maior de transformação digital. Quem acompanha minhas aulas e palestras já deve estar cansado de me ouvir falar, há quase uma década, que a IA é a “cerejinha do bolo” da Revolução Digital: um período longo (de cerca de duas décadas) no qual as sociedades estão em transição de uma sociedade predominantemente industrial-manufatureira para uma economia majoritariamente eletrônica, impulsionada por dados e serviços digitais. Organizações que entenderem e se prepararem para essa macrotendência terão mais chances de êxito em médio e longo prazos.
Estratégia de dados
Nesse contexto, é preciso que se tenha uma estratégia de dados como core do plano da organização. Para além da digitalização dos processos, incluindo o processo produtivo, a criação de novos serviços e produtos data-driven, assim como AI-driven, as organizações vão se deparar, cada vez mais, com a necessidade de estabelecimento de uma estratégia de dados.
A definição tecnológica, o desenho dos processos, a gestão dos recursos humanos envolvidos e as regras para a gestão dos ativos de informação da organização são componentes importantes desse método, servindo como pilar da fundação indispensável para que se possa erguer um edifício sólido e confiável que permitirá a adoção e a inovação estrutural por meio da IA. Não tenho dúvidas de que a maturidade na transformação digital é (e será cada vez mais) um elemento diferenciador na adoção eficiente da ferramenta pelas organizações (e, consequentemente, no seu sucesso).
LEIA AINDA
- FecomercioSP lança decálogo com princípios fundamentais para regulação da Inteligência Artificial
- Padronização global da IA pode ser caminho a ser seguido em todo o mundo, em vez de regulamentação muito densa
- Regulação da Inteligência Artificial precisa mitigar riscos sem restringir oportunidades
Responsabilidade algorítmica (data responsibility)
Há um segundo pilar essencial da fundação desse edifício. Trata-se da compreensão da relevância do manejo ético e responsável de dados e algoritmos. Arriscaria dizer que toda uma nova disciplina tem sido criada no âmbito das práticas ESG (Environmental, Social and Governance): a governança digital — talvez em decorrência de amadurecimento e da pressão da sociedade por uma assimilação mais responsável, transparente e justa das novas tecnologias. O fato é que muitas dessas boas práticas já estão saindo do nice to have para ocupar o lugar do must have, seja por regulações, seja por pressão do mercado.
Privacidade e proteção de dados pessoais é um excelente exemplo que tem avançado a passos largos, inclusive com vários países publicando leis e regulações específicas sobre o tema. Segurança cibernética é outra disciplina com crescimento fantástico, especialmente em melhores práticas, selos e certificações internacionais, assim como nos debates legislativos e regulatórios. E a IA segue no mesmo caminho, com inúmeras iniciativas de peso recentes. Destaco aqui o framework para gerenciamento de risco de IA pelo National Institute os Standards and Technology (NIST); os debates da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) por uma IA Confiável; a publicação de um Código de Conduta para IA Responsável do G7; os debates em torno de definições e padrões de melhores práticas em IA pela International Organization for Standardization (ISO), entre outros.
Além disso, os debates legislativos e regulatórios também estão aquecidos no mundo todo, com destaque para a Ordem Executiva do presidente Joe Biden, os novos avanços nas discussões em torno do AI Act da União Europeia e iniciativas relevantes por Reino Unido, Singapura e Japão, entre outros países. No Brasil, também anda efervescente o debate sobre a regulação da tecnologia, que promete continuar progredindo.
Tanto a estratégia de dados como a responsabilidade algorítmica devem ser um campo central para a edificação da estratégia corporativa. Ambas as disciplinas devem ser pautas frequentes dos conselhos de administração, bem como das direções das organizações. Quem realmente entender e se apropriar desses conceitos estará mais apto para disputar a maratona da concorrência e da inovação impulsionada pela IA (mesmo que, possivelmente, perca os primeiros 100 metros).
*Andriei Gutierrez é um dos líderes do think tank de IA e coordenador do Conselho de Economia Digital e Inovação da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo de São Paulo (FecomercioSP). Também é vice-presidente da Associação Brasileira das Empresas de Software (Abes).