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Carros elétricos e ESG de araque

17/05/2022

Pedro Kutney

Virou moda incluir a compra de carros elétricos na conta de ações e estratégias empresariais de ESG, sigla em inglês que se traduz em governança socioambiental. Com o argumento de assim colaborar para contenção do aquecimento global, por meio da redução das emissões de gases de efeito estufa de suas frotas, empresas orgulhosamente exibem a aquisição de modelos a bateria cujo benefício ambiental é questionável e irrelevante.

Essa política de ESG de araque está sustentando o vigoroso crescimento porcentual do ainda insignificante mercado de carros elétrico no Brasil. No primeiro quadrimestre os emplacamentos de BEVs (Battery Electric Vehicles) aumentaram 257% na comparação com o mesmo período de 2021, quando houve expansão de 308% sobre 2020.

Calcula-se que mais de 80% dos 2.860 BEVs vendidos de janeiro a abril tenham sido comprados por empresas, para integrar frotas próprias e deixar felizes os chamados stakeholders: clientes, empregados, investidores, fornecedores, comunidades e poder público – todos evidentemente muitos ciosos em acompanhar a moda ESG, mesmo sem nem saber exatamente o que é isso.

Volume insignificante

Apesar do crescimento porcentual meteórico, o volume atual de carros elétricos vendidos representa insignificantes 0,3% do mercado brasileiro. Então cabe a pergunta: qual benefício uma frota tão pequena pode trazer ao meio ambiente? Para não dizer nenhum, vamos ficar no quase nada.

Até mesmo nos países que decidiram converter a frota e incentivar a eletromobilidade, com grandes benefícios fiscais aos consumidores, os carros elétricos são mais caros e por isso ainda não têm volume suficiente para oferecer benefícios ambientais relevantes.

Se nesses mercados ainda vai levar bom tempo para colher resultados práticos de redução de emissões com a adoção em larga escala de veículos movidos a eletricidade, a demora no Brasil será dez anos mais longa, no mínimo, dado o atraso nacional de políticas públicas para promover a eletrificação.

Etanol faz mais efeito

No País “ilha do etanol”, onde desde 2003 já foram vendidos quase 40 milhões de carros e utilitários com motor flex bicombustível, que hoje representam mais de 80% das vendas de veículos leves zero-quilômetro, faria muito mais sentido ampliar o uso de álcool combustível nas frotas empresariais, em detrimento da gasolina, para reduzir emissões de CO2.

Apesar de ser menos charmoso para o plano de ESG, em muitas situações carros a etanol, por menos da metade do preço de elétricos, são tão ou mais benéficos ao meio ambiente. Isso porque, quando são mensuradas do poço à roda – inclui todo o ciclo de produção e distribuição da energia utilizada –, as emissões de carbono da queima de etanol são reabsorvidas em 90% pelas próprias plantações de cana-de-açúcar.

Segundo cálculos da Unica, União da Indústria da Cana, um veículo alimentado com etanol no Brasil emite apenas 37 gramas de CO2 por quilômetro rodado – considerando a reabsorção do gás na natureza. Um modelo elétrico híbrido flex, como as versões do Corolla e Corolla Cross produzidas em fábricas paulistas da Toyota, tem emissões ainda menores: 29 g CO2/km.

Já um carro elétrico aqui tem emissões estimadas de 35 g CO2/km, valor muito parecido com o de veículos flex ou até acima de híbridos flex. Isso por causa da matriz energética brasileira, com 64% da eletricidade gerada a partir de hidrelétricas. Na Europa, com mais geração em termelétricas, o mesmo BEV emite 54 g CO2/km.

Apesar dessa conta simples de se fazer, não se conhece nenhuma empresa no país que tenha feito propaganda de ESG por converter 100% suas frotas para veículos flex e tornar obrigatório neles o uso de etanol puro – e obrigar os fornecedores a fazer o mesmo. Tem mais efeito prático, mas não tem o mesmo glamour para o marketing socioambiental, sempre apto a transformar gremlins em ursinhos carinhosos.

Incentivos questionáveis

Se no Brasil é questionável incluir carros elétricos dentre os benefícios da governança socioambiental das empresas, destinar incentivos a eles também é.

Em comparação com os mercados mais eletrificados do mundo, são poucos os incentivos à compra de carros elétricos no país, mas eles existem – e são mal direcionados.

Nos países da Europa Ocidental, China e Estados Unidos os governos oferecem generosos descontos tributários e em dinheiro. Com isso, criam mercado, ao mesmo tempo em que obrigam por legislação a indústria local a reduzir emissões a níveis impossíveis de serem alcançados sem eletrificação, o que estimula a produção local veículos eletrificados e seus insumos – incluindo o mais óbvio deles, a bateria.

Enquanto isso, desde 2017, no Brasil carros elétricos são isentos do imposto de importação – de 35% para qualquer outro modelo a combustão. Dependendo do peso e da eficiência energética, um BEV como o Renault Kwid E-Tech que virá importado da China tem aqui a mesma carga tributária de um modelo flex 1.0, na casa de 25%.

Cabe perguntar se essa isenção é necessária ou eficiente, pois desestimula o desenvolvimento de tecnologia e produção nacional de veículos elétricos. Não por acaso, importadores estão trazendo cada vez mais modelos elétricos ao país, lucram mais com eles, ao mesmo tempo em que alimentam agendas ESG de empresas.

Com mercado insignificante e nenhuma barreira às importações, é improvável que fabricantes façam investimentos na produção de elétricos no Brasil. Ninguém se anima a produzir BEVs com volumes tão baixos e tendo de importar a maior parte dos componentes, incluindo o que é mais caro em um elétrico, a bateria.

O problema é que essa situação deixa o país de fora de importante rota tecnológica da indústria automotiva global. Mais uma vez, um bonde está passando sem parar na estação Brasil.

Financiamento à eletrificação de frotas

Existe ainda um outro estímulo brasileiro à adoção em frotas de carros elétricos importados. O BNDES oferece, exclusivamente para empresas, linha de financiamento especial para compra para veículos de baixa emissão de carbono.

Pela linha Finame BEC, o frotista pode financiar 100% do valor de automóveis e utilitários leves elétricos ou híbridos, com carência de dois anos para iniciar os pagamentos e prazo de dez anos para quitar a operação. O juro da linha é composto por taxa variável de longo prazo (TLP), equivalente à inflação IPCA + 4,63% ao ano, adicionada de 0,95% aa e remuneração do banco repassador limitada a 3,5% aa.

Até o fim de 2024, frotistas podem usar a BEC para comprar carros híbridos e elétricos com índice de conteúdo local mínimo de simbólicos 5%, o que pode ser alcançado facilmente, com a simples montagem de qualquer assessório em território nacional. A partir de 2025 a exigência de nacionalização da BEC sobe a 15%, depois vai a 30% até o fim de 2028, quando será elevada a 50% nos anos seguintes.

Ao invés de estimular a produção local, como sempre priorizou o Finame, o BNDES incentiva a importação de veículos elétricos com financiamento longo e juros baixos, enquanto deixa felizes os promotores de ESG de araque.

* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.

Fonte AutoIndústria – Foto: BWM/Divulgação

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