Terminado em setembro passado o primeiro dos três ciclos de cinco anos do Rota 2030, programa iniciado em 2017 para orientar o desenvolvimento da indústria automotiva no País com metas e incentivos fiscais, é notável a evolução da eficiência energética e adoção de sistemas de segurança dos carros brasileiros.
O problema é que esta evolução custou caro, elevou substancialmente os preços dos veículos, o que reduz o tamanho do mercado, tornando seus benefícios acessíveis apenas às camadas de alta renda – ou seja, menos de 10% da população do País que pode pagar preço médio acima de R$ 130 mil para ter um carro zero-quilômetro.
É preciso reconhecer, contudo, que a elevação desenfreada de preços não foi originada somente na evolução tecnológica obrigatória por lei, mas houve uma combinação nefasta de fatores. Primeiro a falta de componentes eletrônicos – essenciais para o funcionamento de vários dos novos sistemas de segurança e controle do veículo – desde o fim de 2020, provocou paralisações de produção e escassez de carros novos no mercado, dando aos fabricantes oportunidade para cobrar muito e garantir lucros.
O segundo fator está ligado ao câmbio, pois vem de fora parte relevante das inclusões tecnológicas promovidas nos veículos. Para atender as metas de consumo e segurança foram incorporados muitos sistemas importados a peso de dólar encarecido pela galopante desvalorização do real, de quase 30% nos últimos quatro anos – a cotação da moeda americana saltou de R$ 3,86 no início de 2019 para R$ 5,35 atualmente.
Por fim, em ciclo vicioso, a inflação fora de controle, acima dos 10% ao ano, aumentou os custos de produção, promoveu reajustes de preços, elevou os juros e reduziu o poder de compra da população – e no caso do mercado de veículos este poder foi ainda mais reduzido pela consequente alta das taxas dos financiamentos, que já encosta nos 30% ao ano para compra de carros novos.
Evolução apartada
Diante deste cenário pode-se dizer que todas as evoluções incorporadas aos carros nos últimos anos trazem poucos benefícios reais à sociedade, porque chegaram em mau momento econômico – e por isto não se espalham em volume suficiente para fazer diferença relevante na redução de emissões ou de acidentes.
É pena pois as evoluções foram notáveis, especialmente em eficiência energética. De 2011 a 2017, com as metas do Inovar-Auto, a média de consumo energético dos carros vendidos no Brasil já tinha sido reduzida consideravelmente em quase 16%, para 1,74 megajoule por quilômetro (MJ/km), segundo levantamento da Bright Consulting, com folga 4 pontos porcentuais sobre a meta de melhoria que era de 12%.
Para o primeiro ciclo de cinco anos do Rota 2030, que começou a valer a partir de 2018, estabeleceu-se uma nova e mais ambiciosa meta mínima de melhoria de eficiência energética, de 11% sobre o que já havia sido atingido no Inovar-Auto. A legislação impôs multa por carro vendido para as fabricantes ou importadores que não atingissem a redução de consumo e desconto de 1 ponto porcentual do IPI para aquelas que superassem o objetivo em 5,5%, e de 2 pontos para quem ultrapassasse em 10,5%.
Segundo novo levantamento da Bright publicado este mês na revista AutoData, as medições terminadas em setembro passado mostraram que as fabricantes conseguiram atingir a redução mínima de consumo exigida, mas a maioria passou raspando e poucas conseguiram superar a meta para conseguir descontos no IPI.
Dentre as fabricantes que conseguiram ir além da meta mínima de melhoria de consumo, quase todos vendem veículos premium importados e apostaram fortemente no aumento da oferta de modelos híbridos e elétricos, caríssimos e inacessíveis. Audi, FCA Fiat/Jeep, Jaguar Land Rover e Toyota conseguiram 1 ponto de desconto no IPI. Os 2 pontos de abatimento foram conquistados apenas por BMW, BYD, JAC, Porsche, e Volvo, todas importadoras com amplo portfólio de carros eletrificados e três delas somente com este tipo de veículo para vender aqui.
A exceção de todos que conseguiram descontos é a Fiat, que tem poucos veículos eletrificados no portfólio nacional, mas conseguiu bater a meta com seu econômico motor 1.0 que, na média, beneficiou a eficiência e modelos Jeep que ganharam o mesmo benefício – as duas marcas tiveram seus carros auditados como sendo de um só fabricante, a FCA, ainda sem considerar a fusão com a PSA no Grupo Stellantis.
Incentivos aos mais caros
Os maiores benefícios do Rota 2030 foram conquistados pelos carros mais caros e que usam as tecnologias muito caras, a exemplo dos elétricos. Portanto, na média, a camada mais rica da população está recebendo incentivos fiscais nos bens que compra, que por seus baixos volumes de venda trazem poucos benefícios à sociedade.
As evoluções tecnológicas que ajudaram os fabricantes a atender e bater as metas da primeira fase do Rota 2030, principalmente a adoção de motores com turbo, injeção direta de combustível e sistema start-stop – hoje presentes em respectivamente 43%, 29% e 24% dos automóveis vendidos no País – foram adotadas justamente nas versões topo de linha dos modelos, justamente as mais caras.
O mesmo acontece com os modernos sistemas de segurança ativa, que dependendo do número de dispositivos adotados também podem render 1 ponto porcentual de desconto no IPI – válido para fabricantes que já conseguiram 1 ponto por superar em 5,5% a meta de eficiência energética.
Dispositivos mais avançados como frenagem automática de emergência devem equipar não mais que 26% dos carros vendidos este ano, segundo projeção da Bright, enquanto o sistema de assistência de permanência em faixa de rodagem deve estar em menos de 16% dos veículos comprados em 2022.
O controle eletrônico de estabilidade é o sistema de segurança ativa mais presente nos carros vendidos este ano, 83%, mas isto só ocorre porque existe outra lei que torna obrigatório o equipamento em carros novos desde 2020 – e será para todos a partir de 2024.
Evolução inclusiva
Evoluções tecnológicas de eficiência energética e segurança são sempre bem-vindas, mas deveriam beneficiar espectro mais amplo da sociedade, para que de fato façam valer seus benefícios.
No momento em que estão sendo discutidas as novas metas para a segunda fase do Rota 2030, de 2023 a 2027, os fabricantes estão preocupados em não criar novos custos com metas que, dizem, seriam ainda mais apertadas do que as praticadas na Europa.
Empresas e governo precisam discutir como criar uma política de desenvolvimento industrial mais inclusiva e efetiva, o que inevitavelmente exige que cada lado abra mão de margens com redução de lucros e impostos.
Mas não só: também é necessário incentivar o domínio e a produção nacional dos sistemas veiculares mais modernos, o que reduz o custo com importações e amplia o uso das tecnologias e de seus benefícios pela sociedade.
* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo, e editor da revista AutoData. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.
Fonte: AutoIndústria