Montadoras perdem volumes, mas faturam mais

Preço médio de venda de veículos leves sobe a R$ 111 mil e compensa parte de queda em unidades (Pedro Kutney)
Montadoras perdem volumes, mas faturam mais

Quase batido o último prego no caixão de 2021, já é possível assegurar que será mais um ano perdido em volume de veículos vendidos. Em 2020 a pandemia de coronavírus fez o mercado brasileiro de automóveis e comerciais leves encolher 26,6%, baixando para perto de 2 milhões de unidades. Já este ano uma das sequelas da Covid-19 fez a produção parar abaixo da demanda por falta de componentes eletrônicos, estacionando as vendas no mesmo frustrante patamar para uma indústria que tem capacidade para produzir e vender mais de 3 milhões de unidades por ano. 

O dano com a ociosidade das fábricas é grande e irreversível. Contudo, por mais paradoxal que pareça, houve forte recuperação de faturamento dos fabricantes. Ainda que receita maior não signifique necessariamente lucro, ajuda bastante a mitigar as perdas. 

Isso se explica pelo aumento substancial do valor médio da gama de carros vendidos no Brasil, tanto para compensar os muitos aumentos de custos – que foram grandes – como para atender a legislação que exige veículos mais seguros e econômicos, o que eleva o volume de sistemas mais caros a bordo e leva a óbito os modelos mais baratos. Por um dos dois motivos ou ambos, o impacto no preço dos automóveis foi enorme.

Escalada do preço médio de venda

Acompanhamento regular da Bright Consulting revela uma forte escalada no valor de venda dos carros nos últimos dois anos. Nas contas da consultoria, o preço médio de transação de um veículo leve zero-quilômetro no Brasil subiu bastante acima da inflação que passa dos 10% em 12 meses. Segundo o estudo, hoje o valor médio de um carro vendido no Brasil é de quase R$ 111 mil, ou 18,3% acima do verificado em dezembro de 2020.

O ano passado terminou com valor médio de transação de R$ 93,7 mil, que também apresentou expressivo aumento de 11,8% na comparação com um ano antes, mais que o dobro da inflação anual de 4,5% medida pelo IPCA. 

Essa variação foi bem menor em períodos que antecederam 2020, ano do início da pandemia, quando a média de preços de negociação de um veículo chegou a registrar queda de 1,3% na comparação entre a fotografia do fim de 2018 para 2019, de R$ 85 mil para R$ 84 mil. 

Ainda que não seja possível analisar o desempenho dos fabricantes de veículos no Brasil, pois todos são multinacionais que escondem esses números por trás de balanços globais, o fato é que vendendo bem menos as empresas estão faturando mais. 

Em uma conta simplificada, apenas para demonstrar a ordem de grandeza dessa escalada de preços, a venda estimada de 1,96 milhão de veículos este ano vai significar crescimento de volume igual a zero sobre 2020, mas essa quantidade de carros vendidos significa faturamento próximo de R$ 220 bilhões pelo preço médio de venda atual, valor que supera em 23% o obtido um ano antes, e fica menos de 2% abaixo das vendas faturadas em 2019. 

Vender menos, faturar mais, acabar com carros baratos

Não é uma conta exata nem igual para todos os casos, mas é fato que a elevação dos preços médios de venda combinada com programas de corte de custos (essa indústria sempre encontra muita gordura para cortar) fez muito bem ao balanço de algumas empresas por aqui. 

Exemplo disso foi dado pela operação latino-americana da Volkswagen, que anunciou o retorno do balanço ao azul, com fluxo de caixa positivo, após prejuízos que vinham se acumulando por quase uma década desde 2013. É um paradoxo, já que a fabricante está também sendo duramente afetada pela falta de semicondutores e já precisou paralisar diversas vezes suas fábricas no País. 

Ou seja, vendendo menos por limitações da produção, a Volkswagen ainda assim conseguiu equilibrar as contas e escapar de mais um ano no vermelho, graças principalmente a uma gama de produtos de valor agregado muito superior ao que tinha no começo da década.

Quase todos os fabricantes de veículos estão adotando essa mesma estratégia. Luca De Meo, ao assumir o comando do Grupo Renault no ano passado – quando a empresa registrou prejuízo de US$ 9,2 bilhões –, refez os planos estratégicos para lançar uma linha de produtos focada muito mais em valor e muito menos em volumes. 

O resultado prático dessa opção pelos mais ricos já é notado no balanço da empresa: mesmo abalada pela falta de semicondutores que deve reduzir em 500 mil veículos a produção estimada da Renault este ano, de janeiro a setembro o faturamento avançou 12,3%, para € 32,3 bilhões, na comparação com o mesmo período de 2020, enquanto o grupo produziu perto de 2 milhões de unidades, crescimento de apenas 2,6%.

Em visita ao Brasil na semana passada, De Meo afirmou que a Renault vai adotar a mesma estratégia aqui, abandonando o foco em veículos compactos e mais baratos. “Há 10 anos deu certo lançar modelos mais baratos da linha Dacia, mas o Brasil mudou, não é o mesmo de 10 anos atrás. Vamos em busca de valor”, decretou. 

No meio ambiente em que se encontra a indústria automotiva, não há outra forma de apresentar resultados: já que não é mais possível vender muito, é preciso vender menos e faturar mais. É por isso que o antigo carro popular brasileiro entrou em extinção, conforme declarou no início deste mês Luiz Carlos Moraes, presidente da Anfavea, que integra os fabricantes de veículos instalados no País.

“Não existe mais essa figura do carro popular, esquece isso, é passado. O veículo que temos de vender hoje é muito diferente do que existia no fim da década de 1980. Hoje temos legislação com metas de eficiência energética e de adoção de sistemas de segurança que elevaram o nível tecnológico e de custos. Com isso, não dá para imaginar que teremos carros simples e baratos”, afirmou Luiz Carlo Moraes.

Sociedade fica à margem de benefícios tecnológicos

Diga-se que essa não é uma estratégia adotada no mercado brasileiro, é global. Em todo o mundo, a legislação de emissões e segurança está endurecendo, subindo o nível tecnológico e de custos dos carros. Tem de ser assim, é o caminho correto, mas isso faz o mercado mudar para o andar de cima – ou mais de dois acima. O problema é que, no caso de países de menor poder aquisitivo como o Brasil, os inexoráveis aumentos de preços expulsam mais consumidores para fora do mercado do que acontece na Europa ou América do Norte, onde há mais dinheiro para pagar pelos avanços.

Se do ponto de vista financeiro esse caminho parece fazer todo o sentido para as empresas, também limita os benefícios da evolução tecnológica à sociedade. Toda vez que o preço de veículos sobe pela adoção de novas tecnologias de segurança e redução de emissões, parte dos consumidores é expulsa do mercado de zero-quilômetro e alguns migram para comprar usados mais poluentes e inseguros. 

Com isso, a tecnologia demora mais a ser absorvida pelo tecido social e não potencializa os efeitos positivos que traria se mais gente fosse beneficiada. É nesse ponto que o capitalismo não resolve as coisas, deve entrar em cena a mão regulatória dos governos, incentivando o que faz bem à sociedade e desincentivando o que faz mal.

A estratégia de vender menos por mais determina que carros particulares serão um bem cada vez mais para menos gente. Isso é justamente algo que parece custar muito a mudar no Brasil, onde a desigualdade social se perpetua e recrudesce em todos os segmentos de mercado, gerando mais um paradoxo: enquanto milhares de abastados fazem filas de espera por carros acima de R$ 100 mil, na média, alguns milhões têm dificuldades para pagar por sua mobilidade no único veículo popular que deve sobrar por aqui, o ônibus.

* Este texto traz a opinião do autor e não reflete, necessariamente, o posicionamento editorial de Automotive Business

Fonte: Automotive Business

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