Por Rebeca Ribeiro
Na engenharia, existe um conceito conhecido como modelagem de sistemas que, na prática, consiste em representar matematicamente o comportamento das coisas. Esse processo permite, por exemplo, prever como vai funcionar uma suspensão de automóvel quando for aplicada determinada força sobre ela no ambiente físico. Por meio dos dados, é possível antecipar se a suspensão vai quebrar com determinada carga, quanto tempo vai durar se submetida ao esforço prolongado, quando precisará passar por revisão ou ser substituída.
Esse espelhamento das coisas do mundo físico no mundo virtual também é conhecido como digital twins, ou gêmeos digitais. Segundo Arthur Igreja, especialista em Tecnologia e Inovação, não é só o comportamento de objetos inanimados, como uma suspensão automotiva, que pode ter um gêmeo digital. O comportamento das pessoas também pode ser espelhado, algo que pode ser de muita utilidade para as empresas.
Um exemplo prático de utilização de gêmeos digitais por empresas, citado por Tom Moreira Leite, presidente da Associação Brasileira de Franchising (ABF), um supermercado, foi espelhar no ambiente virtual o desempenho na frente de caixa ao substituir um dos checkouts tradicionais, operado por funcionário, por dois de autoatendimento. Os dados mostraram que essa troca reduziria o tempo médio de finalização das compras de 80 segundos para 57 segundos.
“No meu caso, como franqueador, quando falo que vou pilotar uma loja, na realidade vou construir ou reformar uma loja para identificar os gargalos e aplicar as correções na segunda e terceira lojas. Mas isso fica bem mais simples agora que temos essa ferramenta que permite prever com muita precisão como esse ambiente vai se comportar”, diz Moreira.
Segundo um relatório divulgado pelo Fortune Business Insights, o mercado de gêmeos digitais dos Estados Unidos foi avaliado em US$ 1,64 bilhão em 2022 e deverá chegar a US$ 21,40 bilhões em 2030, tendo uma taxa de crescimento anual de 38,8% durante este período.
Como funciona
Para simular situações do mundo empresarial usando ferramentas de gêmeos digitais é preciso, primeiro, desenvolver em software o processo que será estudado. No caso de uma loja que quer otimizar o fluxo de clientes, por exemplo, a planta do estabelecimento pode ser inserida no programa.
A próxima etapa, neste exemplo, seria implantar fisicamente na loja sensores de presença, de movimentação e sinalizadores de informações de processo – como localização, peso, função, tempo -, que fornecerão os dados que serão trabalhados no ambiente virtual. Esse modelo computacional pode ser dotado de uma inteligência artificial.
Com os dados do ambiente físico transmitidos em tempo real para o ambiente virtual é possível traçar cenários para tomadas de decisões. “Tudo o que ocorre no ambiente físico passa automaticamente para o ambiente digital, com interpretações por meio da IA, que fornecem cenários para o meu processo, como, por exemplo, a melhor posição de um operador na loja, o melhor parâmetro de processo para reduzir determinado problema”, diz Cristiane Pimentel, do Instituto de Engenheiros, Eletricistas e Eletrônicos (IEEE) e professora no curso de Engenharia de Produção na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
Cristiane também explica que, para utilizar ferramentas de gêmeos digitais, não é preciso ter uma unidade física para gerar espelhamento. “Atuei com gêmeos digitais para um hospital obstétrico que desejava saber a melhor localização para construir uma nova farmácia-satélite. Obtive três cenários fornecidos pela tecnologia considerando redução de custo, abastecimento de medicamento e menor deslocamento dos funcionários. Isso, sem espelhamento com o ambiente físico, pois a obra seria resultado desse estudo”, diz a especialista.
Ainda no exemplo do hospital obstétrico, Cristiane utilizou a tecnologia de gêmeos digitais, mas agora com espelhamento, para reduzir o tempo de permanência dos pacientes nos leitos. Para resolver essa situação, foi analisada a versão virtual do hospital, que mostrou a necessidade de contratação de mais dois maqueiros. Além disso, foi identificada uma concentração acima da necessária de macas na área de parto cesárea. Segundo a especialista, ao contratar mais dois profissionais e distribuir melhor as macas pelos setores, o hospital aumentou em 10% o número de leitos disponíveis.
Vantagens e desafios
As principais vantagens dessa tecnologia de espelhamento, segundo Cristiane, são a possibilidade de realizar testes sem estar fisicamente no local, reduzindo tempo, além de não precisar expor clientes e funcionários a estas pesquisas. Há também a redução de custo, pois possíveis erros na implantação de processos ou construção de equipamentos ou estruturas já foram antecipados durante a modelagem de sistema. Ela cita ainda a economia de energia, uma vez que não será preciso deslocar produtos ou equipamentos fisicamente durante os testes.
Entre os desafios, Cristiane menciona a obtenção de dados, garantindo a confiabilidade, pois muitas empresas ainda têm dados analógicos, sem estarem digitalizados. Além disso, a especialista cita o investimento na tecnologia, que ultrapassa R$ 1 milhão, além da dificuldade de encontrar profissionais capacitados para implementá-la, pois é necessária uma equipe multidisciplinar, com profissionais especializados em modelagem e inteligência artificial.
Cases
No Brasil, a Petrobras, por meio de um projeto desenvolvido pelo Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (CESAR) e o Laboratório de Análise e Confiabilidade de Estruturas Offshore da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LACEO/UFRJ), tem usado a tecnologia de gêmeos digitais para avaliar e estender a vida útil de risers flexíveis, tubos utilizados em plataformas marítimas que transportam óleo e gás, conectando profundidades de até 8 quilômetros à superfície.
Com a tecnologia, utilizando dados em tempo real, a petroleira monitora e avalia a integridade deste material que, devido à movimentação das águas e à corrosão pelo dióxido de carbono existente no óleo e no gás, se desgasta, exigindo sua troca. Segundo Benedito Macedo, diretor-executivo do CESAR, os risers flexíveis vêm com a validade de fábrica de 10 anos, mas com a tecnologia é possível estender esse tempo de vida para 15 ou 18 anos pela possibilidade de se analisar diariamente a integridade do material, tendo com mais precisão a proporção do seu desgaste.
A Lowe’s, varejista norte-americana do ramo de materiais de construção, está utilizando a tecnologia da Omniverse Nvidia para criar gêmeos digitais de suas lojas. Ao criar essas réplicas no ambiente virtual, a empresa consegue testar diferentes layouts, simulando o comportamento dos consumidores e antecipando mudanças que podem impactar os clientes negativamente.
Origem
Apesar de os gêmeos digitais terem ganhado destaque nos últimos anos, esse conceito foi utilizado pela primeira vez pela Nasa em 1970, durante a tentativa frustrada da Apollo 13 de pousar na Lua. Uma explosão em um tanque de oxigênio do módulo de serviços deixou a tripulação orbitando a Terra por quase seis dias. A situação gerou a icônica frase “Houston, temos um problema”, e também a primeira experiência de uso de sistemas gêmeos.
Com base no incidente e usando o conceito de “geminação”, a Nasa criou um gêmeo físico da Apollo 13, desenvolvendo várias simulações para analisar as falhas e identificar alternativas para trazer os astronautas em segurança para a Terra, o que conseguiram após cinco dias e 22 horas.
Com o desenvolvimento da Internet das Coisas e da Nuvem, os gêmeos se tornaram digitais, sendo usados em diversos setores, como transporte, indústria, manufatura, entre outros.
Fonte: Diário do Comércio – Imagem: Freepik