À primeira vista, o mercado de carros elétricos parece estar em seu melhor momento: a Agência Internacional de Energia (AIE) prevê que as vendas globais de elétricos irão ultrapassar 20 milhões de unidades em 2025, o que vai representar mais de 25% das vendas totais de veículos.
No primeiro semestre, observou-se crescimento nos três principais mercados: China (+32%), Europa (+26%) e América do Norte (+3%), enquanto a média global subiu 28%.
No Brasil, no primeiro semestre, foram comercializadas 30.483 unidades de carros 100% elétricos, crescimento de 33% em comparação ao mesmo período de 2024, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea).
O mês de julho registrou o maior número de vendas mensais de carros elétricos da história, com 7.010 unidades emplacadas.
Ainda assim, os números escondem uma história mais complexa. O cenário geopolítico mundial, as limitações tecnológicas e mudanças nas políticas de incentivo têm criado um ambiente de incertezas para os elétricos.
No ano passado, Automotive Business já havia traçado um panorama desses problemas. Veja a seguir como está a situação agora.
1) Montadoras recuaram em suas metas para carros elétricos

Em todo o mundo, diversas montadoras revisaram ou abandonaram suas metas de eletrificação. A General Motors admitiu que não atingirá sua meta de 1 milhão de veículos elétricos (VEs) na América do Norte em 2025, como havia projetado anteriormente.
A fabricante também desistiu de alcançar uma produção 100% de elétricos até 2035. Em vez disso, a empresa planeja investir US$ 4 bilhões na produção de veículos movidos a gasolina, inclusive motores V8.
A Honda decidiu reduzir em mais de US$ 20 bilhões em seus investimentos em veículos elétricos, diminuindo o valor do equivalente a US$ 67,3 bilhões para US$ 47,1 bilhões até 2031. A montadora japonesa optou por priorizar modelos híbridos devido à demanda mais lenta por VEs nos EUA.
A Volvo também abandonou seu plano de se tornar 100% elétrica até 2030, e manter uma produção de pelo menos 10% de veículos híbridos até aquele ano.
A Renault, que havia prometido em 2002 se tornar 100% elétrica também até 2030, revelou, em 2024, que mudou de ideia e continuará também com modelos a combustão. A Porsche cancelou seus planos de fabricar baterias de alto desempenho por meio de sua subsidiária Cellforce, devido à fraca demanda global por veículos elétricos.
Assim como esses exemplos, há outros. Os motivos alegados são semelhantes: baixa demanda pelos carros elétricos, mudanças no cenário político, alto custo de produção e infraestrutura de recarga insuficiente.
2) As metas da União Europeia foram por água abaixo

Um dos grandes motivadores para a eletrificação das frotas da montadoras na Europa eram as metas regulatórias da União Europeia, impostas em 2019. Elas estabeleciam 55% de redução de emissões até 2030, o que significa que a frota média de cada fabricante precisaria emitir 55% menos CO₂ do que emitia em 2021.
Além disso, para 2035, a exigência era redução de 100%, ou seja, zero emissões líquidas, o que efetivamente proibiria a venda de carros a combustão.
Agora, as montadoras chegaram à conclusão de que não adianta mais correr atrás dessas metas, pois elas são impossíveis. Carta assinada em conjunto por Ola Kallenius, CEO da Mercedes-Benz e presidente da Associação Europeia de Fabricantes de Automóveis (ACEA), e por Matthias Zink, presidente da Associação Europeia de Fornecedores Automotivos (CLEPA), diz que objetivos não são mais viáveis.
“A próxima revisão dos padrões de CO₂ para carros e vans é uma oportunidade para corrigir o rumo e consolidar em lei a tão necessária flexibilidade, a perspectiva industrial e uma abordagem orientada pelo mercado. Está claro agora que apenas penalidades e mandatos legais não impulsionarão a transição”.
Essa carta foi enviada à presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em agosto. O texto antecede uma reunião que acontecerá no dia 12 de setembro, onde Ursula receberá executivos do setor para discutir o futuro da área. As entidades pretendem pedir uma flexibilização das metas.
“A Europa enfrenta quase total dependência da Ásia para a cadeia de valor das baterias, uma distribuição desigual da infraestrutura de recarga, custos de fabricação mais altos — incluindo os preços da eletricidade — e tarifas pesadas de parceiros comerciais-chave, como a tarifa de 15% sobre a exportação de veículos da UE para os EUA”, afirma a carta, enumerando as dificuldades do setor.
“Um melhor aproveitamento de tecnologias-chave da transição, como os veículos híbridos plug-in, será crítico para atingir as metas de descarbonização, engajar os consumidores na transformação verde e atender aos mercados de exportação onde a demanda por essa tecnologia continuará alta”, diz o texto.
Ou seja: os representantes das montadoras jogaram a toalha e admitiram que há dificuldades demais para atingir as metas. É preciso ser realista e incluir os híbridos na discussão. Caso contrário, não há quantidade de multas que consiga forçar uma transição mais rápida do setor.
3) A infraestrutura de recarga cresce a passos de tartaruga

Em 2024, mais de 1,3 milhão de pontos de recarga públicos foram adicionados globalmente, um aumento de mais de 30% em relação ao ano anterior. O crescimento foi expressivo principalmente na China, onde agora há um carregador para cada 10 carros elétricos. No Brasil, foram instalados 12 mil carregadores no ano passado.
Mas é muito pouco. Na Europa, estima-se que sejam necessários de duas a quatro vezes mais pontos de recarga públicos para atender à frota projetada de VEs em 2030. Nos EUA, para atender à demanda, estima-se que 498 novos pontos de recarga precisem ser instalados a cada dia até 2030. E isso não está acontecendo.
Além disso, há vários outros problemas. Para começar, a distribuição desigual, já que a maioria dos carregadores está concentrada em algumas regiões (Califórnia nos EUA e grandes cidades da Europa).
Em segundo lugar, esses dados incluem principalmente carregadores lentos, que são adequados para uso residencial ou local, mas não para viagens longas ou frota comercial. Carregadores rápidos (DC Fast Chargers) ainda são poucos, embora sejam essenciais para a adoção em massa da tecnologia.
No Brasil, um estudo da consultoria Roland Berger aponta que 78% dos brasileiros consideram a falta de infraestrutura de recarga o “problema mais urgente” relacionado aos elétricos.
4) O setor ainda é dependente dos minérios da Ásia para as baterias

Assim como observou a carta das montadoras europeias, minerais críticos como lítio, cobalto e níquel ainda precisam ser importados principalmente de países asiáticos. Só a China domina cerca de 90% do processamento de terras raras, minerais críticos para baterias de veículos elétricos.
Em agosto, a China implementou novas regulamentações que estabelecem cotas para as empresas exportadoras e exigem licenciamento rigoroso para a exportação desses minerais, aumentando o controle estatal sobre sua cadeia produtiva.
É uma forma de retaliação às tarifas de Trump e a outras medidas polêmicas, como a restrição da exportação, por parte dos EUA, de chips semicondutores avançados da Nvidia e da AMD para a China.
O problema é que todas essas disputas geopolíticas levam a flutuações severas de preço. Por exemplo, a decisão da MP Materials (empresa mineradora americana) em agosto de interromper as exportações para a China resultou em aumento de 40% no preço do óxido de neodímio e prasodímio no mercado chinês.
Esses elementos são fundamentais para a fabricação de ímãs de motores elétricos, produto que a China exporta para montadoras do mundo todo. Resultado: carros elétricos mais caros.
5) As mudanças nas políticas de incentivo frearam as vendas de carros elétricos

Boa parte do crescimento nas vendas dos elétricos nos principais mercados mundiais se deveu não só à novidade da tecnologia e a seus benefícios ambientais, mas também a subsídios dos governos. O problema é que, agora, esses subsídios estão acabando.
A Alemanha oferecia um subsídio de 4.500 euros (R$ 28 mil) a quem comprasse carros elétricos, mas ele foi eliminado em dezembro de 2023 — e as vendas caíram 27% no ano seguinte. Foi a mudança mais abrupta em toda a Europa.
Na Suécia, os subsídios foram encerrados em 2022 e as vendas de elétricos caíram 10% em 2024. No Reino Unido, as isenções fiscais para veículos elétricos privados foram removidas também em 2022. Mas o governo britânico tem compensado isso com o Vehicle Emissions Trading Scheme (VETS), que gera créditos para as montadoras que produzem carros com baixas emissões (e obriga as que não produzem a comprá-los).
Vale dizer que, na Europa, vários países ainda oferecem programas de incentivo voltados a empresas que queiram renovar suas frotas e trocar os modelos a combustão por elétricos.
Nos EUA, o presidente Donald Trump decidiu acabar com o crédito de até US$ 7.500 para veículos elétricos novos e US$ 4 mil, para usados, e ele deixará de existir em 30 de setembro de 2025. Um estudo feito pelas universidades de Duke, Stanford e Califórnia prevê que os emplacamentos de elétricos podem cair até 27% com o fim do subsídio.
A China é a única que continua a oferecer incentivos significativos para o consumidor que compra veículos elétricos. Os VEs novos adquiridos em 2024 e 2025 estão isentos do imposto de compra, o que representa economia de até ¥ 30 mil (aproximadamente R$ 22 mil) por veículo.
Essa isenção será reduzida pela metade em 2026 e 2027. Algumas províncias e cidades chinesas ainda oferecem subsídios adicionais.
E no Brasil? Por aqui, o IPI permanece zerado (IPI Verde) para veículos de alta eficiência energética e 12 dos 27 estados oferecem descontos no IPVA na compra de elétricos. O imposto de importação para veículos elétricos foi zerado por um período, mas está sendo reintroduzido gradualmente, com alíquotas de 10% em 2024, 25% em 2025 e 35% em 2026.
No cenário corporativo, o Programa Mover (Mobilidade Verde e Inovação) oferece financiamento para fabricantes que investem em tecnologias limpas. A promessa do governo federal é injetar R$ 190 bilhões no desenvolvimento de novas tecnologias para a cadeia inteira, inclusive autopeças, para incentivar a produção nacional.
É um cenário complexo, que reflete a posição em que estão os carros elétricos: necessários para atingir as metas de redução de emissão de carbono, porém caros demais para produzir e com uma adoção lenta pelos consumidores. Enquanto o setor luta para sair dessa situação, o mundo consegue esperar?
Fonte: Automotive Business