Talvez seja um exagero falar que a digitalização falhou totalmente quando o assunto é mobilidade e o setor automotivo no Brasil. Mas, sim, o processo atual talvez não caminhe como o esperado.
Além das barreiras culturais, há desafios complexos de transformar um setor automotivo tão vasto e interligado. Mas quais são eles? O que aconteceu no caminho? Quais são as perspectivas? As respostas foram dadas em um dos principais painéis do Automotive Business Experience – #ABX2025.
O debate reuniu Cristiano Doria, sócio da Roland Berger, Rodrigo Pereira, CEO da A3-Data, e Pablo Di Si, membro do conselho da Lindsay, JHSF, Copersucar e da Loyola University Chicago (EUA). A mediação foi de Giovanna Riato, editora-chefe de Automotive Business, e de Fernando Miragaya, editor da AB.
Setor automotivo ainda caminha devagar na digitalização
Esta percepção de “falha” da digitalização é corroborada pelo Relatório de Tendências do Setor Automotivo e da Mobilidade, feito pela Roland Berger e pela Automotive Business.
A pesquisa, com 300 lideranças do setor, aponta que quase 70% não vêem necessidade da digitalização imediata ou que ainda pretendem implementar nos próximos anos dentro das empresas.
“Primeiro a gente precisa entender que a tecnologia é um meio para criar valor seja para a indústria ou seja para o consumidor”, diz Rodrigo Pereira, CEO da A3-Data.
“E hoje, com a IA generativa, a gente tem a possibilidade de aumentar muito essa experiência prévia do consumidor para que ele, de fato, chegue na experiência física no local de compra muito mais preparado, engajado e ciente da decisão que está tomando”, completa.
Cristiano Doria, sócio da Roland Berger, acredita que a desburocratização do processo de venda, seja assinatura digital ou um contrato de seguro, já é entendido e percebido como uma evolução e um avanço no processo de venda.
Na esteira disso vem as lojas físicas aprimoradas com experiências virtuais mostrando uma realidade do mercado brasileiro. Doria, no entanto, aponta um desafio. “O que falta é a conclusão da venda”, resume.
Pablo Di Si, membro de conselho de companhias importantes e ex-presidente da Volkswagen do Brasil, lembra que foi um dos pioneiros a lançar uma ferramenta digital para aproximar compradores de vendedores digitalmente. O executivo, no entanto, diz que a tecnologia ajudou, mas não decolou.
“As montadoras tradicionais não têm know-how para fazer software e para vender dados. Mas agora, quando você tem Amazon, Microsoft e Google entrando nos veículos, acho que a penetração de vendas da digitalização vai aumentar”, projeta Di Si.
IA e assinatura de carro são as soluções?
Outro desafio da indústria é não frustrar o consumidor. Apesar de ser ávido por novidades, quem compra precisa enxergar o valor dessa tecnologia, diz Di Si.
“Qualquer tecnologia digital embarcada no veículo tem que ter uma pesquisa do consumidor e ele tem que ver o benefício. Porque se você não vê o benefício, não vai usar, o veículo vai ficar mais caro e vai vender menos”.
No quesito experiência de compra, a IA ajuda as companhias a entenderem o consumidor e serem mais assertivas na hora da abordagem.
“Perguntamos que tipo de carro que ele quer comprar, mostramos outros modelos, verificamos estoque, elegibilidade ou não do financiamento. Aí sim a gente entrega essas informações para um vendedor, que vai receber o cliente na concessionária e está muito mais preparado para essa venda”, diz o CEO da A3-Data.
O executivo ainda aponta que a montadora que se utilizar melhor dessas pesquisas de compra, preferências e tendências “vai sair naturalmente na frente”.
Rodrigo Pereira abre a conversa para o conceito do “figital”, que é realmente unir o melhor do digital à experiência física de contato com o veículo. Este tópico, inclusive, aparece no Relatório de Tendências do Setor Automotivo e da Mobilidade.
Mostra, ainda, que a principal barreira à adoção da venda digital é a preferência do consumidor por uma interação presencial. Ou seja, a ida à concessionária física.
“Tem carro a combustão, híbrido, híbrido plug-in e elétrico. Gera muita confusão nos consumidores. Então eu acho que ainda a loja física vai ser necessária para responder a dúvidas e, claro, para fazer um test-drive”, explica Pablo Di Si.
Carros por assinatura tende a crescer
O membro do conselho da JHSF e Copersucar ainda faz uma aposta. “O carro por assinatura e hoje vai crescer muito no Brasil porque o consumidor não vai querer comprar uma tecnologia que daqui a dois, três anos, vai mudar. Eu vejo muita capilaridade, muito aumento de digitalização no Brasil nos próximos anos”, prevê, Di Si.
A experiência na locação ou na assinatura de um veículo pode viabilizar uma massificação. Cristiano Doria, sócio da Roland Berger, no entanto, diz que hoje ainda existe uma diferença considerável de preço entre um veículo a combustão e um modelo elétrico, por exemplo.
“A locação de um Hyundai HB20 por 18 meses versus um BYD Dolphin Mini, que o contrato mínimo de locação que a gente encontrou foi de 36 meses, estamos falando de R$ 2 mil por mês contra R$ 4 mil por mês. Ainda existe um delta muito grande. Para ganhar volume precisa equalizar também”, exemplifica.
Doria diz ainda que essa transição para a digitalização do setor automotivo precisa ser de forma gradual e equilibrada.
“Não adianta sair de um processo de compra e venda 100% físico para 100% digital do dia para a noite”, afirma. “Você começa a ter uma experiência interativa do consumidor que gosta de ir até a plataforma. Ele pode até não fazer a decisão de compra naquele momento, mas ele está transitando no ambiente e, em um segundo momento, ele decide pela compra e essa compra pode ocorrer online, finaliza.
Chinesas na frente
Questionados se os novos players (especialmente marcas chinesas) no Brasil estão de fato inovando neste processo de digitalização do setor automotivo, os especialistas são unânimes.
“Eles têm uma engenharia e uma digitalização muito avançada e até melhor que algumas montadoras tradicionais. Trazem atributos de carros premium para segmentos médios ao preço do carro médio”, afirma Pablo Di Si, que alerta.
“O Brasil corre risco muito grande na parte de engenharia, na parte de manufatura… E não só o Brasil: Estados Unidos e Europa também”, conclui.
Rodrigo Pereira, da A3-Data, fala que o software embarcado no veículo abre um novo grande leque de oportunidades de personalização e até de venda de novos serviços. E que esse movimento “é inegável que está muito acelerado nos carros chineses”. Porém, minimiza dizendo que “todo mundo tem a possibilidade de entender isso”.
Cristiano Doria, sócio da Roland Berger, por sua vez, resume que há muito a ser trilhado na questão da digitalização do setor automotivo. “Há muita oportunidade, seja em monetização de dados, de informação ou em melhorar a experiência do consumidor”.
Fonte: Automotive Business