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Processo envolvendo a Lei Ferrari avança no STF e expõem divergências no setor

Depois de argumentações dos interessados, caso chegou às mãos do relator Edson Fachin no último dia 6 de maio

03/06/2025

Por Lucas Torres

O processo que julga a constitucionalidade da ‘Lei Ferrari’ chegou às mãos do responsável por sua relatoria no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Edson Fachin, no último dia 6 de maio. Esse é um passo importante para o encaminhamento da solução do caso, já que, de posse dos posicionamentos da Procuradoria-Geral da República (PGR), Senado Federal, Presidência da República, bem como de entidades que atuam como amicus curiae — como Anfavea, Fenabrave e Conarem —, o ministro deverá decidir se a questão será levada diretamente ao plenário ou se haverá a realização de audiência pública, seguida da abertura de prazo para sustentação oral.

Com início no ano de 2023, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 1106, proposta pela PGR, contesta a recepção da Lei nº 6.729/1979 pela Constituição de 1988. Conhecida como Lei Ferrari, a norma foi criada ainda durante o regime militar para regulamentar o sistema de concessão comercial entre montadoras e concessionárias.

O questionamento em andamento gira em torno da alegada violação a princípios constitucionais como a livre iniciativa, a liberdade de contratar, a defesa da concorrência e a repressão ao abuso do poder econômico. Para o Aftermarket Automotivo, as decisões em torno desse processo podem representar um divisor de águas na forma como o mercado é regulado. Afinal, em caso de anulação de pontos centrais da Lei Ferrari, a dinâmica das relações comerciais poderá sofrer alterações significativas — especialmente no que diz respeito à maneira como oficinas e empresas independentes se relacionam com os fabricantes e suas redes de concessionárias.

O nome “Lei Ferrari” é uma homenagem ao advogado e ex-deputado federal Renato Ferrari, idealizador do projeto que viria a se tornar a Lei nº 6.729/1979. Aprovada em pleno regime militar, a norma surgiu da necessidade de regular o sistema de concessões comerciais no setor automotivo, diante de uma crescente demanda por organização nas relações entre montadoras e sua rede de distribuidores.

Sancionada em 1979 e alterada em 1990, a Lei Ferrari é o marco regulatório que estabelece os direitos e deveres nas relações entre montadoras e concessionárias de veículos automotores de via terrestre. Ela determina, por exemplo, que a distribuição de veículos deve ocorrer por meio de contratos de concessão comercial, os quais devem ser regidos por convenções de marca e de categorias econômicas.

Além disso, a lei estipula regras sobre exclusividade territorial, transferência de cotas, obrigação de fornecimento de peças e prestação de serviços de assistência técnica, entre outros pontos. Tais normas visam, segundo os defensores da legislação, garantir equilíbrio contratual, segurança jurídica e capilaridade na prestação de serviços ao consumidor final.

Em jogo

Na prática, o julgamento da constitucionalidade da Lei Ferrari poderá redesenhar o arranjo jurídico que rege uma das cadeias produtivas mais relevantes da economia brasileira. Para os que defendem a manutenção da norma — como Anfavea e Fenabrave —, a Lei Ferrari representa uma estrutura que assegura previsibilidade e eficiência à cadeia de distribuição, além de contribuir para a qualidade do atendimento ao consumidor, sobretudo nos serviços de pós-venda. Um dos pilares centrais da lei é o sistema de cotas de comercialização, que funciona como um mecanismo de equilíbrio e controle da distribuição de veículos entre montadora e concessionária.

Por esse sistema, a montadora estabelece uma meta de fornecimento mensal ou anual de veículos para cada concessionária, com base em critérios previamente acordados. Essas cotas garantem previsibilidade para o planejamento operacional e financeiro das empresas envolvidas e são frequentemente objeto de disputa quando há rescisões contratuais, pois a Lei Ferrari estipula indenizações proporcionais ao volume médio de vendas atingido pela concessionária nos últimos períodos. Isso visa proteger investimentos feitos em estrutura, pessoal e marketing local.

Já para entidades como o Sindirepa Brasil e o Conarem, a lei tornou-se um instrumento de reserva de mercado. Ambas as entidades atuam como amicus curiae – uma terceira parte que ingressa no processo com a função de fornecer subsídios ao órgão julgador –, defendendo a tese de que a legislação impõe obstáculos ao desenvolvimento da livre concorrência e restringe o direito de escolha do consumidor.

O Sindirepa, por exemplo, alega que montadoras mantêm exclusividade na comercialização de veículos e peças, além de dificultarem o acesso a informações técnicas e recursos de conectividade — o que compromete a atuação de oficinas independentes. Já o Conarem argumenta que a rigidez da lei enfraquece a competitividade de retíficas de motores e impõe barreiras econômicas que beneficiam as concessionárias em detrimento de outros agentes do aftermarket.

Juristas também têm se posicionado sobre a controvérsia. Em parecer incluído nos autos, a Procuradoria-Geral da República afirma que a Lei Ferrari não foi recepcionada pela Constituição de 1988, pois limita a liberdade econômica e protege indevidamente um setor específico com um regime jurídico que já não se justifica à luz do texto constitucional. Especialistas que atuam junto às entidades questionam a rigidez das convenções de marca e os efeitos colaterais da estrutura verticalizada das montadoras, apontando para a necessidade de um novo modelo contratual que respeite a concorrência e o direito à reparação independente.

Disputa interna no setor automotivo

Em um trabalho de apuração que analisou todos os documentos apresentados no processo em trânsito no STF, nossa reportagem identificou que eles revelam uma divisão clara entre os atores do setor automotivo. De um lado, Anfavea e Fenabrave se alinham na defesa do modelo tradicional regulado pela Lei Ferrari, destacando sua importância para a estabilidade e organização do mercado.

A Anfavea argumenta que a legislação não oferece vantagens unilaterais às montadoras e que, inclusive, impõe obrigações rigorosas, como a manutenção de peças por 10 anos e a compensação em casos de rescisão contratual. A Fenabrave, por sua vez, enfatiza o papel das concessionárias na oferta de serviços de qualidade, capilaridade de distribuição e geração de empregos — com mais de 7.400 concessionárias espalhadas por todo o país.

Do outro lado, Sindirepa e Conarem afirmam que o cenário atual não reflete mais a lógica dos anos 1970. Para essas entidades, o fortalecimento das concessionárias e sua verticalização com marcas próprias de peças e serviços vêm concentrando o poder de mercado e restringindo o acesso de outros agentes às informações necessárias para operar em igualdade de condições.

Antonio Fiola, do Sindirepa, discute processo sob ponto de vista da reparação

Novo Varejo – Em 6 de maio, o processo que julga a constitucionalidade da ‘Lei Ferrari’ chegou às mãos do relator no STF, Edson Fachin. Como o Aftermarket Automotivo tem observado essa questão e como um possível parecer em favor da inconstitucionalidade poderia impactar o mercado independente?

Antonio Fiola – Bem, inicialmente cabe ressaltar que o Sindirepa Brasil tem competência de manifestar sua posição em nome da indústria da reparação de veículos e não por toda a cadeia de empresas que forma o grandioso mercado de reposição no Brasil, hoje o 4º maior do planeta. Temos acompanhado este assunto com atenção e responsabilidade, pois, caso a sentença siga a trajetória da inconstitucionalidade da Lei 6.729/79, acompanhada de sua alteração através da lei 8.132/90, entendemos que se abre uma janela favorável para uma justa competição, situação hoje que não é percebida. Um exemplo mais claro para reflexão dos leitores: a rede de concessionárias Chevrolet, da montadora General Motors do Brasil, detém a exclusividade de comercialização do veículo novo, da comercialização de peças sob proteção da lei de design, das peças originais, uma alíquota de MVA na substituição tributária diferenciada e menor que no canal independente, acesso exclusivo às informações tecnológicas, de diagnóstico e de conectividade, peças de combate com a marca ACDELCO, oficinas independente próprias com a marca ACDELCO operada exclusivamente pela rede de concessionárias, locadoras de veículos, enfim, os consumidores mesmo mantendo a posse do veículo não conseguem as informações e diagnósticos fora da rede de concessionárias. Não há o direito de escolha sem as facilidades encontradas na rede.

Novo Varejo – Nos documentos de argumentação, o Sindirepa se coloca ao lado da PGR e em posição antagônica à adotada por organizações como a Anfavea e a Fenabrave. Analisando as questões práticas do mercado, o que faz a principal entidade representativa dos reparadores adotar esse posicionamento, e, mais do que isso, a se engajar diretamente no processo?

Antonio Fiola – O Sindirepa-SP, com o apoio dos Sindirepas que fazem parte do Sindirepa Brasil, trilhou a mesma direção e oficializou junto ao STF o pedido de ingressar como amicus curiae, porém, corroborando a posição da petição nº 1332930/2023 do Ministério Público Federal – Procuradoria-geral da República, que em síntese retrata que esta Lei num período de regime democrático que vivemos viola a proteção à liberdade de iniciativa, da livre concorrência, da defesa do consumidor e da repressão ao abuso de poder econômico. O que no passado protegia empresas de pequeno e médio portes monomarcas diante de sua vulnerabilidade, hoje, se transformou em grandes grupos econômicos multimarcas com faturamento de bilhões de reais. Um exemplo mais claro sobre a matéria que pode melhorar a reflexão dos leitores: na Lei 6.729, as montadoras de veículos eram impedidas de se relacionar diretamente com as empresas de reparação independente de veículos, ou seja, só era possível via a rede de concessionárias, o que já demonstrava uma reserva de mercado; no entanto na alteração com a Lei 8.132 este artigo foi alterado em função do árduo trabalho realizado pelo Sindirepa, tornando possível que as montadoras tivessem relacionamento direto com as oficinas independentes, sem qualquer autorização da rede de concessionárias. Acontece que a própria lei 6.729 dá amparo para as chamadas Convenções de Marca, em que mesmo com a alteração do artigo nº 28, nestas convenções, os acordos firmados impedem que as montadoras atuem diretamente com as oficinas independentes. Querem vender peças, mas sonegam as informações tecnológicas de acesso, assim como a facilidade nos diagnósticos. Não há competição justa.

Fonte: Novo Varejo

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