O espaço conquistado pelos e-commerces e marketplaces no hábito do consumidor brasileiro, somado à pulverização de plataformas de venda e redes sociais, tornou a presença digital inegociável para qualquer empresa do varejo, inclusive o de autopeças.
Este movimento trouxe, claro, oportunidades para o varejo de autopeças. Oportunidades estas que, como de costume, atraíram o interesse de golpistas. Só em 2024, mais de 5 milhões de fraudes digitais foram registradas no Brasil, um crescimento de 45% em relação ao ano anterior. O prejuízo estimado passa dos R$ 3,5 bilhões, segundo dados da OLX e da Serasa Experian.
No setor automotivo, os impactos já são visíveis. Em fevereiro deste ano, a Polícia Civil de São Paulo desmontou uma quadrilha especializada em aplicar golpes com sites falsos de autopeças. O esquema movimentou cerca de R$ 6 milhões, com páginas que copiavam o visual e o nome de lojas de autopeças reais, exigiam pagamento antecipado e sumiam com o dinheiro dos consumidores. As vítimas, além de lesadas financeiramente, acabaram contaminando a reputação de negócios legítimos.
O caso não é isolado. Relatórios recentes mostram que o Brasil ocupa hoje a 6ª posição mundial no índice de transações online suspeitas, e cerca de metade dos brasileiros já foi vítima de alguma tentativa de golpe digital. Para o pequeno e médio varejo de autopeças, o risco é real e a resposta do setor ainda está aquém da ameaça.
Crime organizado está de olho na sua empresa
Segundo o coordenador do MBA em Cibersegurança da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Álvaro Massad, a combinação entre amadurecimento digital tardio e pulverização de pequenos varejistas criou um ambiente propício para a atuação criminosa em larga escala. “O crime é cada vez mais organizado e estuda o setor. Se o varejo de autopeças não se proteger, pode perder não só vendas, mas a confiança do consumidor como um todo”, afirma o especialista.
O alerta faz sentido. Com perfis falsos cada vez mais sofisticados, que copiam visualmente os canais oficiais das lojas, os golpistas têm se passado por varejos de autopeças legítimos em marketplaces, redes sociais e até sistemas de busca. A promessa de um bom desconto, somada à exigência de pagamento antecipado, ainda é suficiente para atrair vítimas.
“Eles imitam com precisão. Criam perfis quase idênticos aos originais e atuam com uma narrativa bem construída. O consumidor não desconfia. E o lojista, muitas vezes, só descobre depois que já há dezenas de reclamações circulando com o nome dele”, explica Massad.
Segundo o especialista, parte do problema vem do fato de que muitas lojas ainda não cuidam dos próprios canais digitais com o mínimo de planejamento. Ter perfis oficiais, padronizar identidade visual, registrar presença em redes – mesmo que não sejam ativamente usadas – tudo isso reduz o espaço para que golpistas atuem se passando por você. “Se o nome da sua loja não está no Instagram ou no Facebook, alguém vai colocar. E pode ser um criminoso. O proprietário do varejo de autopeças precisa ocupar esses espaços, mesmo que não vá usá-los com frequência”, orienta o professor.
A vulnerabilidade do setor, no entanto, não está apenas na ação dos golpistas. Está, sobretudo, na displicência ou até omissão de boa parte dos próprios varejistas. Senhas fracas, perfis desatualizados, falta de autenticação em duas etapas e ausência de rotina mínima de monitoramento tornam a vida dos criminosos muito mais fácil — especialmente nas pequenas e médias empresas. “Quando uma empresa é pequena, muitas vezes a senha do Instagram é compartilhada entre dois ou três funcionários. É a mesma há meses. Não tem troca, não tem política, não tem rastreabilidade. Isso é abrir a porta e deixar o ladrão entrar com tapete vermelho”, diz Massad. “Eles estudam o setor. Sabem que , no varejode autopeças, a autopeça é produto de busca urgente, que quem compra está com o carro parado, que o preço é decisivo. Aí criam uma loja falsa, colocam o preço 30% abaixo do mercado, anunciam no Google e no Instagram e somem depois do pagamento. E o cliente ainda vai marcar o perfil verdadeiro da loja para reclamar”.
Essa cadeia de equívocos, iniciada com o golpista, mas alimentada por brechas do próprio varejo, gera um efeito dominó. Afeta a confiança do consumidor, impacta a reputação da empresa real e contamina o setor como um todo. O risco é o consumidor deixar de comprar online não só daquela loja, mas de qualquer outra do mesmo mercado. “Se a prática vira comum, o cliente começa a associar o golpe ao setor inteiro. Ele não vai mais confiar em nenhum e-commerce de autopeças. Vai preferir pagar mais caro na loja física a correr o risco de cair num golpe pela internet”, alerta Álvaro Massad.
CUIDADOS
Diante desse cenário, o especialista recomenda que as lojas adotem rotinas mínimas de segurança. Algumas medidas não exigem conhecimento técnico nem grandes investimentos: padronizar a identidade visual, cadastrar a loja nas principais redes (mesmo sem uso ativo), configurar autenticação de dois fatores, trocar senhas com frequência e criar uma rotina de backup. “É o básico. Mas o básico salva.”
Ferramentas como Google Alerts, Reclame Aqui Pro, Brand24 e Hootsuite também podem ser usadas para monitorar menções à marca — e muitas oferecem versões gratuitas com funcionalidades básicas. “O próprio Reclame Aqui pode ser o primeiro sinal de que algo está errado. Às vezes, o lojista nem sabe que alguém está usando o nome dele para aplicar golpe, até começar a receber reclamações no canal oficial”.
Nem os varejos mais tradicionais estão imunes ao risco
Se os especialistas alertam para a sofisticação crescente dos golpes digitais no varejo, o que se vê na prática é um impacto direto no dia a dia de empresas tradicionais do setor. Gigantes como a Rocha Autopeças, de Campinas (SP), e a Jocar, de São Paulo, começaram a ver relatos de consumidores que pagaram por peças e nunca receberam os produtos se multiplicarem em sites como o Reclame Aqui pouco antes de descobrir que golpistas estavam utilizando seus nomes, logos e endereços.
“Se você vê a página, parece nossa. Eles copiam tudo, até o nome de funcionário que aparece em vídeo institucional. Já tive cliente vindo retirar peça aqui na loja, achando que tinha comprado da gente. E era golpe”, relata o proprietário da Rocha Autopeças, Roberto Rocha.
Do outro lado, empresários do varejo de autopeças tentam se proteger como podem — com avisos nas redes sociais, boletins de ocorrência, notificações extrajudiciais e denúncias em plataformas digitais. Mas a dinâmica é desgastante e, na maior parte do tempo, ineficaz para conter a onda.
CONTRABANDO
O primeiro alerta de golpe envolvendo o nome da Rocha Autopeças surgiu em 2019. A denúncia veio de um ex-funcionário, que identificou no Facebook uma página com logotipo e imagens idênticas às da empresa. Os preços, bem abaixo da média do mercado, chamavam atenção. A loja investigou e descobriu que a operação falsa era mantida por uma empresa com sede no Paraná. “Eles revendiam peças contrabandeadas, segundo apuramos na época. A página foi derrubada, mas dali em diante os casos só aumentaram”, diz Roberto Rocha.
De lá para cá, os episódios se tornaram frequentes. Com a popularização de anúncios pagos e impulsionamentos em redes sociais, os golpistas passaram a investir em estratégias mais agressivas de visibilidade. “Aparecem nos primeiros resultados do Google, têm páginas bem feitas, número de WhatsApp com foto de funcionário nosso… É muito convincente”, diz o empresário.
O impacto vai além do prejuízo à imagem. Em um dos casos mais graves, um consumidor de Brasília (DF) comprou um lote de peças por R$ 3.600 – valor que, segundo ele, equivalia a mais de R$ 20 mil em produtos. O cliente, que integrava a Polícia Civil, acabou localizando a loja verdadeira e acionou as autoridades locais. “Felizmente o investigador entendeu que não tínhamos relação com aquilo. Veio conversar pessoalmente. Quinze dias depois prenderam sete envolvidos, em Campinas, São Paulo e Praia Grande. Mas o golpe voltou a acontecer dois meses depois”, relatou Rocha.
Outro caso exigiu o comparecimento de Roberto Rocha a uma audiência judicial. Um consumidor citou a loja como responsável por uma venda fraudulenta e entrou com queixa. Segundo o empresário, as plataformas digitais não têm sido parceiras dos lojistas nessa luta. “Você denuncia, mas levam tempo pra agir. Quando agem, a página já migrou para outro domínio ou número. Já vi golpista copiar até o aviso que colocamos nas nossas redes, alertando para o golpe. Usam contra a gente”, lamentou o empresário de Campinas.
Jocar luta para extinguir danos causados por empresa quase homônima
A paulistana Jocar, uma das pioneiras e mais tradicionais no varejo de autopeças com presença no e-commerce nacional, também viu seu nome envolvido em situações de golpe. Apesar de atuar exclusivamente com site próprio – e sem intermediação de marketplaces ou redes sociais –, a empresa começou a receber relatos de clientes que haviam caído em falsas promessas em seu nome.
“Geralmente começa com um anúncio no Facebook ou Google. A pessoa clica, vai pro WhatsApp, fecha a compra, faz o Pix e depois não recebe nada. Aí vai procurar a gente pra reclamar, achando que fomos nós”, conta Moisés Sirvente, diretor da empresa.
De acordo com ele, os casos ganharam força a partir de 2024. Em um deles, um consumidor relatou, no site Reclame Aqui, que havia pagado por retrovisores e um quebra-sol para Fiat Idea, mas não recebeu a encomenda. Em vez disso, os golpistas passaram a solicitar a instalação de um aplicativo externo para “acompanhar o envio”, gerando ainda mais riscos.
Em outra situação, uma cliente da Grande São Paulo relatou que comprou um cinzeiro de painel via WhatsApp e pagou via Pix após uma suposta emissão de nota fiscal. Quando tentou retornar para obter o rastreio do pedido, foi bloqueada. O link falso usado na transação levava a um site com domínio e identidade visual similares ao da Jocar original.
A resposta da empresa tem sido sempre a mesma: boletim de ocorrência, atuação do setor jurídico e avisos recorrentes nas redes sociais. Moisés chegou a enviar notificação extrajudicial a perfis que utilizavam o nome “Joc Car Autopeças” – contato que, no entanto, não gerou retorno.
Fonte: Novo Varejo