Quando o rádio foi inventado, no final dos anos 1800, muitos decretaram a extinção dos jornais impressos. O surgimento e a popularização do aparelho de televisão entre as décadas de 1920 e 1940 também suscitou análises que previam a “morte” do rádio. Por sua vez, a internet, até hoje, é apontada como causa para o “inevitável” fim de outros modelos de comunicação, como as emissoras de TV aberta e os planos de TV por assinatura.
É óbvio que a chegada das novas mídias gerou inúmeros impactos para os meios já existentes. No entanto, o que a história recente mostra é que análises prevendo o fim disso ou daquilo raramente prosperam. Ainda hoje contamos com o jornal impresso, o rádio e principalmente a televisão como ferramentas de entretenimento e informação.
É possível estender essa análise para o comércio, de modo geral. No período pré-pandemia de Covid-19, já havia quem decretasse a inevitabilidade do fim do comércio em lojas físicas para determinados segmentos. Nesse entendimento, somente prosperaria quem se dedicasse a levar seu comércio a atuar somente (ou prioritariamente) no mercado online.
Houve, de fato, crescimento nas vendas online no Brasil. Em 2019, na comparação com o ano anterior, houve alta de 23% no e-commerce do País – que já vinha de evolução de 15% em relação a 2017. No último ano “pré-pandêmico”, cerca de quatro milhões de brasileiros fizeram sua primeira compra online.
O aumento da demanda online já era esperado, de alguma forma. A popularização dos smartphones, o maior acesso à internet e a maior variedade de produtos sendo comercializados online fizeram com que os números naturalmente registrassem alta.
Nesta análise, a pandemia, que passou a atingir diretamente os brasileiros em março de 2020, seria o estopim para que muitos segmentos do comércio migrassem seus negócios inteiramente para o formato online. Seria então o fim das lojas físicas?
A resposta é “não”, tal qual ficou evidenciado nos exemplos dos meios de comunicação já citados. Aqueles que simplesmente descartaram o formato de lojas físicas passaram a se deparar ao longo da pandemia com os inúmeros problemas que as vendas online também podem gerar. Dificuldades logísticas para envio e também para retirada de itens devolvidos, qualidade ruim na interação com o cliente, queda do ticket médio e impossibilidade de competir com gigantes internacionais são apenas algumas das questões que passaram a atormentar as marcas que eventualmente haviam declinado do modelo de lojas físicas.
Segmentos técnicos
Quando olhamos para o e-commerce, é necessário pensar que a compra do consumidor está intrinsecamente relacionada à facilidade e praticidade. Se o processo de aquisição do bem não for claro ou lhe gerar dúvidas e angústias que sequer existiam no início de sua demanda, não se deve esperar que o consumidor concluirá sua compra neste canal.
Durante muitos anos, isso esteve relacionado à segurança proporcionada ao cliente nas compras online. Muitos consumidores descartavam a ideia de realizar qualquer procedimento online com o receio de que seus dados poderiam ser utilizados futuramente em golpes diversos. Naturalmente, todos os envolvidos nos processos de e-commerce já vinham investindo quantias consideráveis para aumentar a segurança de suas plataformas e atrair consumidores que até então desconsideravam esse formato.
O cenário imposto pela pandemia, no entanto, acelerou sensivelmente esse processo. Durante meses, não houve outra opção ao brasileiro que não fosse o comércio online. Itens que sequer eram comercializados no e-commerce passaram a atingir um público cada vez maior, já que a locomoção pelas grandes cidades até então era inviável. Mesmo os comerciantes que sequer pensavam em migrar para o modelo online tiveram que se adaptar ao difícil momento, já que não se vislumbrava a possibilidade segura de voltar a abrir as portas.
A duração da pandemia, no entanto, fez surgir uma série de indagações a respeito do e-commerce. O que fazer, por exemplo, nos casos de segmentos com alta complexidade técnica, cujas aquisições de itens requerem algum tipo de consultoria profissional?
É o cenário da reposição automotiva, por exemplo. Diante de sua necessidade por determinado item, o consumidor, muitas vezes, não consegue guiar sua compra somente pelo descritivo e pelas informações que constam no cenário online de comércio. A complexidade atual dos veículos – na qual uma peça pode ser utilizada em mais de 30 carros de diversas marcas, versões e modelos – faz com que o e-commerce de peças e acessórios seja insuficiente para atender às principais demandas dos consumidores.
A demanda não atendida de forma integral gera devoluções, reclamações (muitas vezes em canais que potencializam os danos à reputação das marcas) e mancha (muitas vezes de forma definitiva) a jornada de compra do consumidor.
Nesse sentido, a loja física continua sendo essencial para dirimir dúvidas e eventuais insatisfações de clientes cujas demandas não foram inteiramente atendidas. É através do ambiente físico que as marcas conseguem assistir adequadamente seus consumidores, indicando peças e acessórios corretos para seus modelos de veículos, auxiliando também em eventuais manutenções e pós-venda.
O modelo físico também permite ampliar sensivelmente o ticket médio dos consumidores. As peças e acessórios automotivos apresentam complexidades variadas e nem todas, naturalmente, requerem uma complexa consultoria de representantes das marcas. Cabe aos players do segmento de reposição, no entanto, justamente aproveitar a presença dos clientes que demandam assistência especializada para também lhes oferecer produtos que inicialmente não estavam em suas intenções de compra.
São diversos os tipos de consumidores no âmbito automotivo, com diferentes urgências e expectativas. No entanto, são pouquíssimos aqueles com a intenção de compra “impenetrável”, direcionada apenas ao item sobre o qual tem extrema necessidade. A loja física pode, portanto, aproveitar as nuances da intenção de compra do consumidor, oferecendo-lhe itens que não estavam em seu radar ao adentrar os espaços.
Ou seja, o consumidor entra para adquirir determinado item para o motor de seu carro, mas, uma vez estando na loja, acaba por comprar peças e acessórios relacionados a melhorias e incrementos diversos. São movimentos de compra que dificilmente conseguem ser explorados no ambiente virtual, muitas vezes marcado pela escolha racional dos produtos.
Adaptações necessárias
Importante frisar: não se trata de escolher um ou o outro modelo de vendas (físico e online). O aumento da vacinação nacional e o arrefecimento da pandemia fez com que o modelo físico de vendas voltasse a registrar força, mas é inegável o quanto o e-commerce cresceu nesse período. Principalmente se observamos segmentos que tradicionalmente atuavam com ênfase no físico, como o de autopeças.
De acordo com pesquisa realizada pela plataforma de vendas Mercado Livre em junho de 2021, o setor de vendas online de autopeças em toda a América Latina havia crescido 63% durante a pandemia. Foi um movimento que, ao menos no Brasil, ocorreu em paralelo à queda nas vendas de carros novos, com consequente valorização para a manutenção de automóveis usados.
Cada vez mais, no entanto, fica evidente a importância de mesclar os dois tipos de cenários de vendas. Nem se dedicar somente às vendas físicas e nem se voltar somente ao e-commerce. Especialistas em comportamento do consumidor vêm observando cada vez mais variações em relação aos hábitos dos clientes mesmo após a suspensão de medidas que, na prática, impediam ou dificultavam o comércio em lojas físicas.
Dentre os diversos perfis, há aquele que prefere fazer uma ampla pesquisa pela internet para adquirir o produto posteriormente em uma loja física. Há também o caminho inverso, do consumidor que usa as lojas físicas para pesquisar e comparar os produtos, mas que opta pelo e-commerce para concluir sua compra. Além disso, verifica-se hoje o consumidor que só utiliza um dos meios para realizar suas compras e que não parece disposto a mudar seus hábitos se não verificar, de fato, algum valor para “mudar de canal”.
São vários os fatores que pesam para a formação de um ou outro perfil de consumidor. Em um país de proporções continentais como o Brasil, a questão da logística da entrega muitas vezes se torna um fator que desmotiva o consumidor a utilizar os canais online. Seja pelo custo do frete, seja pelo tempo que terá de esperar para receber o produto, muitos consumidores acabam descartando o cenário online e optam pelas lojas físicas.
Para as marcas, é preciso pensar cada vez mais em uma experiência omnichannel. Afinal, para o consumidor, jamais se tratará de dois canais de venda distintos. Ambos representarão a marca e para ele, em seu entendimento, não deveria haver diferenças significativas entre eles.
Cobrar preços essencialmente diferentes para o mesmo produto em lojas físicas e online geram no consumidor uma frustração em sua experiência de compra. No fundo, o consumidor não entenderá as próprias diferenças de custo que a mesma marca enfrenta para vender no meio online ou no meio físico.
Outro ponto que pode gerar grande insatisfação no público consumidor é o atendimento. Ao longo dos últimos anos, tornou-se consenso entre as empresas a ideia de que era necessário oferecer aos consumidores um atendimento via WhatsApp ou ferramentas semelhantes de mensagens instantâneas.
O problema é que não basta disponibilizar um número para esse contato. É necessária uma dedicação específica da empresa para que o consumidor não se sinta falando sozinho. Em muitas ocasiões, essa sensação de não ser atendido (ainda que o canal esteja disponível) gera uma insatisfação ainda maior no cliente. Se o consumidor envia uma mensagem à sua empresa via WhatsApp e leva 24 horas ou 36 horas para receber um retorno, é melhor disponibilizar somente um e-mail como forma de contato.
De certa forma, o mesmo vale para o controle de estoque. Disponibilizar as quantidades de cada produto em cada filial em tempo real é uma funcionalidade que demanda um investimento e organização consideráveis. Nesse caso, vale a máxima: se você se propõe a oferecer isso, faça-o de forma correta. Quando o consumidor sai do ambiente online e se desloca para uma loja física para ver sua compra frustrada por um “problema no sistema”, a situação certamente irá lhe gerar uma insatisfação ainda maior.
Mesmo segmentos técnicos como o de reposição automotiva podem atuar de forma “híbrida”, sem concentrar suas vendas em um único cenário (físico ou online). É preciso, no entanto, reconhecer suas vantagens em cada ambiente, aproveitando também as funcionalidades de cada plataforma para potencializar seus ganhos.
A pandemia trouxe uma série de mudanças significativas e certamente acelerou processos para diversos segmentos. Não significa, no entanto, que já podemos abandonar as lojas físicas e ficar apenas no ambiente virtual. Afinal, a própria pandemia também ensinou a todos o quanto o contato humano faz diferença.
Fonte: Revista Mercado Automotivo